Criador do AfroReggae diz que a luta agora é para que o bem vença o mal
Uma viatura da polícia militar e um camburão da Core, a tropa de elite da polícia civil do Rio de Janeiro, guardam a portaria do condomínio elegante, nos arredores da capital fluminense. Enquanto aguardamos o porteiro avisar da nossa chegada, três homens trajando a farda negra da polícia especial descem do camburão empunhando fuzis M-16.
Adentramos por ruazinhas estreitas, ladeadas de jardins sem grades. Na garagem está um policial do Bope, que, nas horas vagas, faz a segurança da família.
Ultrapassadas todas as barreiras, José Junior, o idealizador e coordenador do AfroReggae, abre a porta. Com um Red Bull na mão, trajando bermudão e chinelo, o cabra marcado para morrer nos conduz para a piscina. Por quase 4 horas, fala sem trégua, entremeando o discurso com goles do energético (foram cinco latinhas durante o papo). Carioca marrento, dono de uma personalidade controversa, visual extravagante e oratória afiada, José Junior entrou para uma macabra lista VIP: a dos jurados de morte.
Ele está na mira de traficantes do Complexo do Alemão e do Complexo da Penha, fato comprovado por escutas telefônicas que registraram um papo entre Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho (CV), e Fernandinho Beira-Mar, ambos presos na penitenciária de Catanduvas, no Paraná. Avisos claros já foram disparados: em julho, traficantes incendiaram a sede do AfroReggae no Alemão e, três dias depois, dispararam tiros de fuzil contra a sede da Penha. Os funcionários da ONG foram coagidos a deixar as favelas. Na conversa entre VP e Beira-Mar, o segundo diz: “Foi o Juninho... Ele que está por trás disso, né? Tinha que mandar um salve lá para ele”. “Salve”, na linguagem do tráfico, quer dizer represália. Os dois traficantes foram indiciados pelos ataques.
Assim como os dois o chamam de Juninho, José Junior também demonstra intimidade com vários escalões. Quando fala do João, refere-se a João Roberto Marinho, presidente das organizações Globo. Sérgio é o governador do Rio, Sérgio Cabral. Paulo é o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. Pablo Capilé, ativista cultural que esquentou ânimos por causa da Mídia Ninja e do movimento Fora do Eixo, é apenas Pablo. E Marcinho VP, chefe do CV, vira Márcio na boca do empreendedor de 45 anos.
“Minha mulher perguntou até quando isso vai durar. Respondi: talvez para sempre”
A afinidade com grupo tão diverso foi conquistada de grão em grão. Em 1993, fundou o AfroReggae. Vinte anos depois, a ONG nascida na favela de Vigário Geral, zona norte do Rio de Janeiro, é um case social que hoje movimenta R$ 20 milhões por ano, emprega diretamente cerca de 400 pessoas e sustenta 50 projetos só nas favelas cariocas. José Junior também virou apresentador de TV. Seu programa Conexões urbanas, do Multishow, vai para a sexta temporada em outubro.
Além do trabalho na ONG, ficou célebre graças ao ofício de mediador de conflitos. Há alguns anos, figura na guerra carioca como o sujeito que fala com os dois lados: cúpula dos bandidos e cúpula da polícia. Assume, por exemplo, ter sido amigo de Marcinho VP. Quando o Complexo do Alemão foi invadido para a instauração de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), em novembro de 2010, subiu o morro para pedir aos traficantes que evitassem o confronto.
A boa relação com o crime organizado, no entanto, azedou por causa de um pastor evangélico. No ano passado, José Junior denunciou Marcos Pereira, líder da Assembleia de Deus dos Últimos dias, com sede em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Acusações: estupro de mulheres e menores de idade, associação com o tráfico e envolvimento em ataques de facções criminosas no Rio, em 2006 e 2010, com ônibus queimados pela cidade e cabines policiais metralhadas.
Segundo José Junior, a igreja de Marcos Pereira seria uma espécie de lavanderia do CV e o pastor, um “conselheiro do tráfico”. Até pipocarem as denúncias, ele e Marcos Pereira eram companheiros na tarefa de mediar conflitos e retirar jovens do crime. Agora, a amizade virou uma arma apontada para a sua cabeça. José Junior hoje vive dentro de uma bolha. O banco Santander, patrocinador do AfroReggae, disponibilizou dois carros blindados e paga homens do Bope para se revezarem 24 horas na segurança. Há sempre dois “caveiras” na cola de Junior, da mulher e dos cinco filhos (a mais velha com 13 anos; o mais novo, um bebê nascido no mês passado).
Na manhã fria de sábado em que o encontramos, José Junior estava em casa só com o filho de 4 anos. No longo papo, ele relata a saga com o pastor Marcos Pereira, diz não acreditar que qualquer mal vá lhe acontecer e garante que já fez do limão uma limonada, com a campanha “A pacificação é nossa, o AfroReggae é nosso, deixem o Rio em paz”, lançada em jornais e na Internet no dia 23 de agosto e que ganhou adesão até do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Jura fidelidade ao Sérgio, o Cabral, apesar de a popularidade do governador estar em queda livre e seu cargo na berlinda desde que começaram as manifestações de junho.
Ao final da conversa, saímos em comboio do condomínio escoltados pelo camburão da Core, com os três policiais exibindo para fora das janelas os fuzis M-16, para comer no quilo da esquina. “Se eu vou dar um passeio no shopping, eles estão atrás de mim. Vou correr, eles estão atrás de mim. Não posso mais fazer nada sem eles”, José Junior diz, sem sinal de que isso o incomoda. “Minha mulher me perguntou até quando isso vai durar. Eu respondi: talvez para sempre.”
Quando você conheceu o pastor Marcos Pereira? Por muitos anos, eu ouvi as histórias de um pastor que fazia mediações de conflitos, parava rebeliões e tinha acesso a favelas. As pessoas falavam que eu tinha de conhecê-lo. Um dia, em 2006, fui encontrá-lo.
Onde foi o encontro? Na igreja, em São João de Meriti. Eu de sandália, bermuda, camiseta, todo tatuado, brincos. Ele falou: “Já fui igual a você. Já fumei maconha, usei drogas, bebi”. Julgou pela aparência. Aí falei: “Pô, então tu nunca foi igual a mim: eu nunca bebi, nunca fumei maconha nem usei drogas”. Houve uma empatia. E comecei a ver coisas impressionantes.
“Muita gente, como o Marcelo Freixo, me aconselhou a ficar atento [com o pastor]. Achei que era preconceito”
O que, por exemplo? Essa coisa de realmente existir um poder de sugestão, que quando usado para o bem é muito bom. Eu achava que ele usava para o bem. Nunca fui da igreja, mas ia para conversar. Não sobre espiritualidade, mas sobre mediação de conflito, histórias do crime. Nesse meio-tempo, passei a perceber que o cara não era ele, mas o Rogério [Menezes, na época assistente do Pastor Marcos]. Rogério é que ia para o front, negociava.
O que você viu que mais o impressionou? Acho que foi ver bandido desmaiando. O Marcos Pereira botava a mão e o cara caía de fuzil na mão. Impressiona muito, porque bandido geralmente não paga mico, né?
Pessoas que saíram do crime pelas mãos do pastor, como Feijão (ex-chefe de Acari) e Norton (líder da rebelião no presídio de Benfica), foram para o AfroReggae. Você e ele tinham uma parceria? Sim. Mas, quando as pessoas saíam da igreja e iam para o AfroReggae, elas contavam a outra versão. E aí começou a vir a decepção. O que acontece é o seguinte: você chega lá na igreja e vê histórias muito fortes. Fica impressionado, impactado. Eu fiquei impactado e impactei muita gente. Levei uma lista de pessoas para conhecer o pastor, muitos jornalistas.
Você nunca foi tocado espiritualmente por ele? Não sou evangélico, apesar de ter uma relação forte com Deus. Li a Bíblia da primeira à última página, Velho e Novo Testamento. Não sou um expert, mas via que eles falavam coisas erradas no culto. Confundiam personagens, por falta de conhecimento. Eu achava estranho, mas ficava na minha.
O pastor mantinha uma disciplina medieval na igreja, tudo era proibido, de sexo a Coca-Cola. O que você achava disso? Muito equivocado. Para me provocar, como ele sabia que eu gostava de divindades, sejam hindus ou africanas, ele falava no culto: “Buda e Shiva eram demônios”.
Você desconfiou que havia uma conotação sexual entre o pastor e as mulheres da igreja? Tinha uma relação esquisita com as mulheres. Mas era de ambas as partes, um flerte. Para mim, não tinha nada de mais.
E da ligação econômica com o tráfico, desconfiou? Disso eu desconfiei, mas nunca tive prova. Ele dizia que não, traficantes negavam. Muita gente, inclusive o deputado Marcelo Freixo, me aconselhou a ficar atento. Eu achava que era preconceito por ele ser evangélico.
O que o fazia suspeitar? Ele tinha umas Land Rovers, dizia que empresários convertidos haviam doado. Eu sabia que não era dinheiro arrecadado nos cultos. O público da igreja é pobre, ele não teria aquele patrimônio. Eu achava que era dinheiro de políticos, porque o pastor angariava milhões de votos. Mas o que me atraía era o fato de ele ter controle em rebeliões, favelas, penitenciárias.
Como você começa a desconfiar de algo errado? Quando o Norton e o Feijão vêm para o AfroReggae e me contam coisas. Aí percebo também que algumas pessoas, ao sair da igreja, voltavam para o crime. Estranho pra cacete. Ninguém é obrigado a ficar para sempre na igreja. Mas ir pro crime de novo? Estranho. E muitos eram assassinados de repente. Aí, em 2009, um amigo me fala: “Pô, o Rogerinho saiu da igreja lá do pastor”. E eu falei: “Sério? Mas o Rogério é o braço direito do cara”. Meu amigo não sabia o motivo: “Pois é, saiu, mudou telefone, parece que mudou de casa”. Falei: “Porra, quero ligar pra ele. Rogério é um puta mediador de conflito”.
Antes de continuar: o que é mediador de conflito? Nesse caso é guerra entre facções do narcotráfico, guerra com a polícia, guerra entre facções e milícia. Você entra pra tentar mediar o problema para que inocentes não morram. O Rogério fazia mais que isso. Pegava pessoas amarradas para morrer e arrancava das mãos dos traficantes. Pessoas que deviam ao crime ou mesmo policiais.
“Quando minha mulher teve contrações, não pude correr pra maternidade. Tive que esperar a chegada da escolta. Foi muito estranho”
Quando você localizou o Rogério? No início de 2009, ele foi na minha casa e falei: “Pô, o que que houve?”. Ele conta que a mulher tinha sido estuprada pelo pastor. Não acreditei. O papo foi na frente dela, eles começaram a chorar. Ele disse que o pastor pegava dinheiro do tráfico, que muitas rebeliões eram teatralizadas, o pastor mandava fazer para ir lá e “resolver o problema”. Que, nos vídeos dos resgates em favelas, ele mandava bater no cara para aparecer como salvador. Um show de horrores.
Você acreditou no Rogério? O dinheiro passou a ter explicação. Mas na parada do estupro eu não acreditei. No dia seguinte falei com o pastor: “Vem cá, meu irmão, o Rogério me contou que você transou – não tive coragem de falar estuprou – com a mulher dele”. Ele virou outra pessoa. Disse: “Mermão, tu manda ele se foder. Comi a mulher dele mesmo. A vagabunda quis dar e eu comi”.
O Rogério sabia que você ia falar com o pastor? Não. Quando contei para ele, o Rogério ficou apavorado: “Porra, ele vai mandar me matar”. Eu disse: “Que é isso, cara? Ele não vai matar ninguém”. E o Rogério repetia: “Vai, eu estou morto, Junior”. Aí contratei o Rogério e o pastor passou a ter ódio de mim. Fazia cultos em favelas em que eu atuava e espalhava que eu tinha o diabo no corpo. Até que um dia um traficante me contou que o Waguinho [ex-líder do grupo de pagode Os Morenos, hoje pastor evangélico] foi em favelas dizer que eu era X-9, que estava ligado à inteligência da polícia .
Isso é sentença de morte no crime organizado. Claro. Eu liguei para o pastor puto da vida. Isso no final de 2009, começo de 2010. Falei exatamente assim: “Meu irmão, você está grampeado, eu também devo estar. Vai tomar no teu cu, seu filho da puta. Se acontecer alguma coisa com o Rogério ou com alguém perto de mim, tu vai aparecer na capa dos jornais preso. Só vou sossegar quando eu te ver de camisa verde e cabeça raspada”.
O que ele respondeu? “Que é isso, meu filho? É tudo mentira. Vou fazer uma oração para você.” Eu falei: “Oração é o caralho, seu verme”. Aí ele passou a fazer cultos falando muito bem de mim, e isso que era o preocupante. Se ele fala bem de mim e acontece alguma coisa, iam dizer: “Porra, o pastor não! O pastor gosta dele!”. Aí conversei muito com pessoas ligadas a ele, inclusive mandei recado para o Márcio [Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho]. Eu sabia que o Márcio era a força dele, mas que não fechava com estupro, pedofilia, essa coisas.
Até então você não sofreu ameaça? Em 2012, um ex-traficante que hoje está no AfroReggae chegou e falou: “Junior, eu estive lá na boca. Porra, os caras falaram para eu sair do AfroReggae, que o pastor está botando todo mundo aqui na bola para morrer, inclusive você”. Foi quando comecei a receber vítimas de estupro e filmar as histórias, com o consentimento delas, claro.
Mas não denunciou à polícia? Eu tinha falado com autoridades, mas o negócio não andava. Ele é ligado a políticos poderosos. Pensei: o jeito de blindar a gente é botar na mídia. Liguei para o jornal Extra e ofereci entrevista.
Depois dessa entrevista, o boato era que se tratava de briga de amigos. Teve esse erro, a matéria deu a entender que era briga entre amigos, ou ex-amigos. Rendeu a semana inteira. Aí fui no Marcelo Freixo e ele me convocou para depor na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em março de 2012. Depois, fomos ao Decod (Delegacia de Combate às Drogas). Foi uma decepção. Era pra ele ter sido preso logo e só foi preso este ano.
Por que demorou para ele ser preso? Todos esses anos ele foi minerado. Sabe o que é isso? Ele foi extorquido várias vezes, entendeu? Era muito dinheiro envolvido.
E como ele conquistou tanto poder no crime organizado? Ele sempre foi “treteiro”, “volteiro”. Quando era garçom, deu o golpe no maître e virou maître. Aí entrou para a igreja, derrubou o pastor e assumiu o comando. O Marcos Pereira tem o dom da oratória. Não tem conteúdo, mas tem oratória, tem carisma. É um psicopata.
Mas e a ligação com a cúpula do crime? Quem levou o pastor até o Márcio foi o Rogério. O Márcio é uma vítima dele. Ele não tem interesse que o Márcio saia da cadeia. Enquanto o Márcio estiver preso, ele exerce o poder.
Ele era a voz do Marcinho VP aqui fora? Continua sendo, mesmo preso. Tem pessoas operando para ele.
Como as coisas se desenrolaram até o pastor ser preso? Outras vítimas apareceram para falar. Pela primeira vez havia pessoas mostrando o rosto. Sempre rolaram investigações que não deram em nada. Viemos a descobrir que teve uma menina que quis denunciar e ele mandou matar, a Adelaide. Ela frequentava a igreja e fez um vídeo com as orgias, com as sacanagens, com o negócio do dinheiro. Ele mandou matar a garota.
Você se sentia ameaçado? Recebi informações de que quatro pessoas no AfroReggae estavam marcadas: eu, Rogério, Tuchinha [ex-chefe do tráfico da Mangueira] e Gaúcho [ex-chefe do Complexo do Alemão]. Tuchinha e Gaúcho cumpriam a semiaberta. Saíam da cadeia durante o dia para trabalhar. O plano era matá-los na saída. Eles estavam trabalhando comigo e sabiam demais.
Em 2006 e 2010, o Rio viveu ondas de terror, com ônibus queimados, cabines policiais metralhadas. Você declarou que o pastor estava por trás disso. Tudo tem a ver com ele, é a mente do crime. Em 2010, os ataques foram na véspera das eleições para atingir o Sérgio [Cabral, então candidato ao governo]. O Marcos tem interesses políticos. O candidato dele ao Senado, o Waguinho, um desconhecido, teve mais de 1 milhão de votos.
Você soube disso na época? A informação de que haveria os ataques, sim. Tentamos fazer a mediação e isso me colocou numa situação de extremo risco. Foi enviada uma carta, apreendida na penitenciária de Catanduvas, com o seguinte texto: “O cara do AfroReggae, fortão com o governo, está entrando na mente dos nossos irmãos de Bangu 3. Peço autorização para suspendê-lo com muita inteligência”.
Logo depois ocorreu a ocupação dos Complexos do Alemão e da Penha. Você não teve medo de subir o morro, já que uma carta pedia seu pescoço? Ninguém entendeu por que eu demorei para ir, as pessoas não sabiam da carta. Até que o Marcelo Freixo se colocou à disposição para subir e tentar evitar um banho de sangue.
E você resolveu acompanhá-lo? O Brother, funcionário do AfroReggae no Alemão, me ligou e falou: “Estou vindo da boca. Os caras querem te ver. O Pezão”. O Pezão era o cara que mandou a carta. Era justamente o filho da puta. Aí eu falei: “Ah é, Brother? Leva o telefone lá”. O Pezão falou: “Pô, era legal você mediar essa situação aqui, porque todo mundo vai morrer”. Respondi: “Engraçado, agora você fala em mediar, mas mandou cartinha, né?”. E ele: “Não fui eu, não mandei nada”.
Eles estavam com medo da invasão da polícia? Estavam. Falei para o Pezão: “Tu é um safado, uma pessoa sem escrúpulos, cretino, covarde, filho da puta”. Ele continuou insistindo que precisava de mediador. Aí, Rogério e Gaúcho me convenceram. Falaram: “Porra, Junior, vai morrer inocente, vai morrer culpado, vai morrer polícia. Só tu pode desarmar essa parada lá em cima”.
A cena era impressionante: os bandidos fugindo em fila pela trilha que liga os Complexos da Penha e do Alemão. Meu filho, hoje com 2 anos, tinha acabado de nascer. Pensei: “Caralho, vou subir essa porra, posso morrer. O moleque não vai nem conhecer o pai direito”.
As imagens de você subindo o morro com os tanques cercando o complexo de favelas correu os jornais. Antes de subir, fiz uma reunião com o presidente da associação de moradores. Falei com o irmão do Márcio, que não é envolvido e sempre me ajudou nas mediações. Éramos 30 pessoas subindo, eu na frente, camisa do AfroReggae. Quando chegou lá em cima, éramos só três.
“Entrar no Complexo do Alemão, o grande bunker do CV, considerado impenetrável, era uma vitória emblemática, quase utópica”
Mediar naquela circunstância era convencer os caras a se entregar? Não. Era convencê-los a não revidar. O Pezão era chefe do Alemão naquele momento. Você o encontrou lá em cima? Não, já tinha fugido. Estava o Fabiano, o FB, da Penha. Parecia um militar cansado de uma guerra. Ele estava chorando. Falei: “Cara, não tem que atacar. Vocês vão morrer. Vai morrer inocente. Vale a pena?”. Ele chamou todo mundo e disse que ninguém deveria atacar.
Havia muitos traficantes lá no alto? Muitos. Todos combalidos, assustados, mas querendo ir para o confronto.
A retomada do Alemão e da Penha foi um espetáculo midiático. Qual a importância real? Entrar no Complexo do Alemão, o grande bunker do CV, considerado impenetrável, era uma vitória emblemática, quase utópica. Só foi possível com auxílio da Marinha e do Exército.
O que as UPPs trouxeram para o Rio de Janeiro? Autoestima. O morador da favela passou a ser menos discriminado. E tem uma reconquista pessoal, de a pessoa ter acessos a créditos que antes não tinha. O favelado começa a ser um cidadão. O poder público hoje entra nas favelas, através da coleta de lixo, dos serviços da Light...
Voltando a Marcos Pereira, como foi o final da novela? Quando muda a gestão da Decod, ele vai preso. Com os mesmos casos, sem entrar nada novo.
O que você sentiu quando o viu preso? Eu estava na Espanha, soube por telefone, de madrugada. Parecia que eu tinha tomado uma caixa de Red Bull. Vou te falar: eu chorei. Liguei para o Rogério emocionado. Mas eu sabia que a guerra ia tomar uma proporção maior. Sou místico, meu número é o sete, e ele foi preso no dia 7 de maio de 2013.
E aí começam os ataques ao AfroReggae? Dia 26 de maio, nove dias depois. Na corrida que organizamos no Complexo do Alemão houve tiro pra caralho. Nego atirando pro alto durante o evento. Era o começo das represálias.
E depois incendiaram uma das sedes da ONG. Eu estava com o meu pai no hospital. O telefone tocou e me falaram que os traficantes queriam que a gente deixasse a favela. Corri para a sede e meu telefone toca de novo: meu pai tinha morrido. Não pude chorar, estava numa reunião difícil. Quando acabou, chorei pra caralho.
Você não cogitou fechar as sedes do Alemão e da Penha? Não. As pessoas pediram pra fechar, dizendo que iam morrer. Liguei pro Fábio Barbosa, presidente do Grupo Abril, e pedi pra ele fazer alguma coisa na [revista] Veja. Tínhamos que usar as nossas armas. Saiu na Veja. Depois dei uma coletiva, Jornal Nacional, todo mundo.
Vocês fecharam por um tempo a sede do Alemão, não? Durante a visita do papa, o que já estava programado. Depois reabrimos. Houve tiros de novo. Atacaram a Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, fuzilaram lá. E, quanto mais eles batiam, mais eu revidava, falando na imprensa.
Você chegou a ser procurado por representantes do tráfico? Sim, queriam negociar, queriam que eu tirasse a queixa contra o pastor. Falei: “Não, nem fodendo”.
Quando percebeu que a guerra não era mais contra o pastor, e sim contra Marcinho VP e Beira-Mar? No ano passado. Mas o Beira-Mar não tem nada contra mim. O filho dele trabalhou no AfroReggae. Encontrei a esposa dele em trabalhos que faço em presídio e ela me tratou bem. Ele foi levado de bucha nessa história.
Como é estar na posição de um ameaçado de morte? Não me sinto assim, mas sei que estou. Minha vida mudou? Mudou. Hoje tenho um esquema de segurança em torno de mim, bancado pelo banco Santander. O governo do estado também disponibiliza unidades da PM para manter guarda na porta das sedes do AfroReggae. E eu ando com escolta da Core. Para mim, hoje, ir ao cinema é complicado. Tudo é complicado.
Sua vida ficou mais restrita? Bastante. Não posso fazer uma caminhada. Como vou caminhar com um monte de cara com fuzil atrás de mim? Quando minha mulher teve contrações, não pude correr para a maternidade. Tive que esperar a chegada da escolta. Muito estranho.
Você nunca pode sair sem a escolta? Não. Ninguém nunca tinha dito não pro narcotráfico antes. Fui a primeira pessoa talvez na história a dizer que não ia seguir ordem deles. Ou eu fecho o AfroReggae ou vão me matar? Como acatar uma parada dessa? Quem me conhece sabe que a minha atitude só podia ser essa. É o meu jeito.
Você teme pela família? Não falo disso.
Como nasceu a campanha “A pacificação é nossa, o AfroReggae é nosso, deixem o Rio em Paz”? Resolvi juntar pessoas bacanas, de vários segmentos, para um movimento de valorização do AfroReggae, da pacificação. São 54 nomes. Luciano Huck, Cissa Guimarães, Fábio Barbosa, Ricardo Guimarães, André Skaf, Márcia Florêncio, Junior Perim, Cacá Diegues, Hélio de la Peña... Uma coisa com a cara do AfroReggae, uma galera.
Quais os resultados da campanha até agora? O Fluminense entrou em campo com a faixa da campanha. O Corinthians meteu a hashtag #forçaafroreggae na camisa. Aí o Vasco foi além, entrou com a faixa e com a hashtag. O Rappa gravou um vídeo, postou. Aí veio o Concerto pela Paz, para comemorar os 20 anos do AfroReggae e pela pacificação, Teatro Municipal lotado. Agora já tem planejado um grande evento de meditação. A gente tá criando um conceito de que todo mundo foi atingido por aqueles tiros. Conseguimos 121 milhões de acessos, uma adesão do caralho.
Todo morador do Rio reconhece os benefícios da política de pacificação. Mas há críticas: ditadura policial nas comunidades, repressão contra os jovens, nenhum investimento social... O que acha dessas críticas? Concordo. Mas essa mesma juventude que está reivindicando nunca criticou o tráfico, que fez uma ditadura 10 mil vezes pior do que a dos policiais. Hoje, só de poderem se manifestar, seja contra a polícia ou contra o governo, já é um caminho melhor. Mas não dá para o capitão ou o major de uma unidade pacificada ser o gestor daquela comunidade e substituir o líder comunitário. Não dá.
Qual o caminho? O certo seria fazer uma composição, um tripé. O homem que cuida da segurança pública, que é o capitão ou o major, o líder comunitário e alguém da Secretaria de Governo fazerem uma gestão conjunta. Dizer que está tudo bem é mentira. Tem muitos problemas. Mas tem como melhorar. É um programa que tem que ser adaptado, é muito novo. Agora, uma coisa é certa: só polícia não resolve. Tinha que ser uma gestão tripla.
É só uma questão de ajustes no programa, então? A UPP, a pacificação, é a melhor coisa que aconteceu no Rio de Janeiro nos últimos tempos. Ter um programa de governo na área de segurança é do caralho. Bater na UPP hoje, enfraquecer a UPP, é retrocesso.
Mudou também o perfil do tráfico no Rio? Uma vez você disse que só encontrava bandido doido para largar o crime. Continua todo mundo doido pra sair. O fato ocorrido com o AfroReggae foi sinal de fraqueza. Se o tráfico estivesse forte, eu já teria morrido. Nesse momento, temos que dar apoio à política de pacificação. Quem quer o bem do Rio de Janeiro tem que querer que certas políticas avancem e a pacificação é uma delas. Desde que começou a pacificar, são menos 100 mil balas que a polícia gasta. Isso pode significar menos 100 mil pessoas mortas.
No momento há muitas manifestações no Rio contra o governador Sérgio Cabral, denúncias de corrupção no governo, de mal uso do dinheiro público... Você o apoia? O Sérgio foi foda. Ele me disse: “Irmão, se você quiser sair do Brasil, eu não gostaria, mas eu vou respeitar a sua decisão. Mas, se você ficar, nós vamos te dar toda proteção”. Gosto muito dele, acho que fez bem pro estado onde eu moro. Denúncias? Realmente tem várias denúncias que não se comprovaram ainda. Se for comprovado, ele tem que perder o mandato. Se ele for bandido, como qualquer bandido, tem que ir preso.
Até que provem o contrário, vocês são parceiros. Estou sabendo que um deputado ligado ao pastor Marcos vai me denunciar por lavagem de dinheiro do narcotráfico. E aí? Denúncia não é prova. Repito: eu gosto muito do Sérgio. É uma pessoa que eu passei a admirar.
Mas você sabe que declarar amor ao Sérgio Cabral hoje é polêmico. Eu graças a Deus tenho essa independência. Sábado tive o prazer de twittar três coisas. 1: Tenho muito orgulho da minha parceria com as organizações Globo. 2: Estou muito feliz com as novas parcerias com a editora Abril. E 3: Eu acredito no Pablo Capilé.
Você conhece bem o Capilé? Adoro, sou fã. Postei uma foto minha com ele. Fiz isso porque eu acho que o garoto merece. Se eu hoje tivesse 20 anos, eu ficaria um tempo na Casa do Fora do Eixo. O Pablo é foda. Eu falo o que eu penso. Eu não jogo para a plateia, entendeu?
José Junior esteve nas Páginas Negras da Trip #142. Vai lá http://goo.gl/EedeKL