Jornalismo é (ou deveria ser) isso

por Marta Góes
Trip #196

Realidade Revista fala da publicação que dava aos jornalistas tempo para contar histórias

45 anos depois, parece romântico: no mundo em transformação, uma equipe de jornalistas escolhia os assuntos que julgava mais atraentes e ia buscá-los pessoalmente onde quer acontecessem, do Brasil profundo à guerra do Vietnã, pelo tempo que fosse preciso. Depois, com anotações, fitas gravadas e os olhos cheios, trancavam-se para escrever, não raro em casa, enquanto, na redação, fotógrafos que se tornariam lendários, editores e diretores de arte buscavam a melhor imagem, o desenho exato. Não por acaso, despejavam nas bancas, a cada mês, edições marcadas pela pulsação daqueles dias. Jornalistas e leitores nunca mais esqueceram de Realidade.

José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro, integrantes da equipe inicial, reuniram no livro Realidade Revista (Realejo Livros) alguns de seus melhores momentos, produzidos por eles e por profissionais já falecidos, como Paulo Patarra, Sergio de Souza, Narciso Kalili, Roberto Freire e David Zingg. Detiveram-se sobre o período inicial, dez meses antes que o AI5 introduzisse a censura ostensiva e o medo permanente, desfazendo, entre outros sonhos a perfeição daquela fórmula.

O mundo que aparece nas reportagens ficou antigo em muitos aspectos. Era anterior ao celular e ao computador, as distâncias eram enormes e a liberdade individual mínima – a única mulher decente era a mulher casada (Três Histórias de desquite), e a única ditadura mencionável era a dos outros (Arriba España, fuera Franco!). Mas a qualidade das reportagens resistiu ao tempo. Ela deve muito à receita infalível de ter grandes profissionais trabalhando com tempo e dinheiro. Deve-se ainda mais à capacidade de olhar em volta e se surpreender. Os assuntos podiam ser excepcionais como a guerra ou banais como uma fornada de pão; e chegavam às páginas cheio de personagens, sotaques, vozes – inclusive a do autor. Transpiram uma curiosidade inesgotável pelo outro, não importa se poderoso, célebre ou cidadão comum. Bom jornalismo, é bom lembrar nesses dias de especialistas e entediados, tem alguma coisa a ver com isso.

Vai lá: Realidade Revista
Realejo Livros, 432 págs., R$ 7

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