por André Maleronka
Trip #181

Mestre Shotaro Shimada, primeiro professor de ioga do Brasil, morreu hoje cedo, aos 80 anos

Adeus, Shimada

O mestre de ioga Shotaro Shimada faleceu hoje pela manhã, aos 80 anos. Destaque da última edição da Trip, Shimada foi o primeiro professor de ioga do Brasil, conhecido pelo bom-humor e pela disposição de sempre. Jamais deixou de acordar às 5h30 para a sua prática corporal. O velório acontece neste momento, às 16 horas, no hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo. O enterro será realizado amanhã, às 8h, no Cemitério da Paz (R. Dr. Luís Migliano, 644, Morumbi, São Paulo, tel. 11 3742-8584). Você confere logo abaixo a última entrevista da vida de Shimada, publicada em Trip # 181.

IOGUE NÚMERO UM

Encontrar o mestre Shotaro Shimada é uma experiência sensorial. Dentro de seu instituto de ioga de tons sóbrios, você se esquece que acabou de entrar num prédio do lado do centrão de São Paulo, em meio a avenidas cheias de carros, corredores de ônibus e calçadas abarrotadas. É só conversar por alguns minutos com o primeiro professor da prática no Brasil que o ritmo frenético da cidade se esvai.

Shimada, 80 anos, dá aulas nesse mesmo endereço desde 1958, antes mesmo de o conceituado professor Hermógenes [capa da Trip #152] começar a lecionar. “O Hermógenes veio depois, e temos uma ótima relação”, explica. Hermógenes confirma: “Eu praticava ioga no Rio e me achava sozinho no Brasil, não sabia do Shimada. Quando soube, fui a São Paulo conhecê-lo e ficamos amigos. Admiro a vida espiritual que Shimada representa para nós.”

Na década de 60, Shimada chegou a dar aula para o ex-governador de São Paulo Ademar de Barros. “Não dava muita certo, mas durou seis meses. Eu dava as aulas no palácio, e não me sentia muito a vontade. Meu carro ganhou até placa oficial, eu podia estacionar em qualquer lugar. Mas tinha muita gente ruim em torno dele, então propus parar e ele aceitou”.

Shimada fala sempre com suavidade, mas tem opiniões firmes. “Sempre defendi que ioga não era nada daquilo que aparecia nas revistas, nada daquele sensacionalismo. Ioga é uma ciência”, diz. O mestre critica a imagem que a mídia vende, com posturas quase impossíveis de reproduzir. “Ficar em cima de uma pedra, fazendo aquelas posturas difíceis, não é ioga. É malabarismo. Ioga é meditação, aquietação, harmonia”, explica, mostrando as fotos da autobiografia A ioga do mestre e do aprendiz.

Pais escravizados
A mãe e o pai de Shotaro deixaram o Japão em 1926, atraídos por promessas de boas condições de trabalho no Brasil. “Fizeram muita propaganda enganosa, disseram a eles que trabalhariam quatro dias por semana e descansariam outros três. Chegando aqui foram trabalhar numa fazenda como semiescravos, ficavam confinados”, conta. Os pais de Shimada foram vítimas do esquema de escravidão por dívida, já que tudo devia ser comprado na própria fazenda a preços exorbitantes, e o salário baixíssimo oferecido nunca dava para pagar as dívidas, que só cresciam. “Foi uma decepção muito grande, todos os imigrantes dessa época sofreram. Ficavam confinados na dependência dessa dívida, assim como aconteceu com imigrantes italianos ou alemães”, lamenta.

Shimada não chegou a trabalhar na lavoura, mas sentiu o baque de perder o pai e o irmão mais novo ainda criança, aos 11 anos. Pouco depois veio a Segunda Guerra Mundial, e os imigrantes japoneses e seus descendentes passaram a ser perseguidos. O ensino da língua japonesa chegou a ser proibido. “Eu era brasileiro, mas muitas vezes queriam me prender”, lembra o professor.
Foi nas aulas de judô que o jovem Shotaro, então com 18 anos, ouviu falar pela primeira vez da ioga. “Um colega meu de treino me falou sobre uma prática chamada ciência ioga da respiração. Começamos a treinar todo dia essa respiração, e percebi que ela desenvolvia aspectos favoráveis tanto na capacitação física como mental.” Nos três anos seguintes (1952, 1953 e 1954), já craque da novidade
– que trouxe mais firmeza e quilíbrio para os golpes –, foi campeão paulista de judô.
O interesse cresceu diante dos resultados que ele sentia e via, e logo Shimada estava às voltas com pilhas de livros de anatomia, fisiologia e patologia, buscando entender os mecanismos do corpo e da mente. Queria saber como a ioga se processava, como “corrigia qualquer comprometimento do corpo e, principalmente, da cabeça”.

Por causa dos títulos no judô, começou a crescer a demanda por suas aulas de arte marcial, que aos poucos foram se tornando aulas de ioga, conforme Shimada incorporava seus conhecimentos na prática dos treinos. Foi nessa época que o dono de uma relojoaria no largo São Bento lhe cedeu um salão, espaço que se tornou sua primeira escola.

“Eu falava que dava aula de ciência respiração ioga. Não podia dizer que estava dando aula de ioga porque naquela época isso era uma coisa assim, fenomenal, identificada com o faquirismo”, conta. “Na avenida São João tinha gente que ficava numa caixa de vidro, jejuando, isso era ioga para a maioria das pessoas. Na revista Cruzeiro aparecia lá na Índia os homens pendurados pelo pescoço, aqueles sensacionalismos. Muita gente dizia que eu ia ficar pirado por causa da ioga… Não sei se já estou…”, diverte-se o octogenário.

Posturas na TV Tupi
Depois de se casar, Shotaro deixou a sobreloja da relojoaria e mudou suas aulas para o espaço que mantém até hoje. Foi nessa época que estreou um programa de TV vespertino, “desses para donas de casa”, na TV Tupi. “Um dia veio uma senhora aqui, a Marlene Mariano. Ela fazia o primeiro programa de TV à tarde, o Revista feminina. Ficou sabendo da ioga e me convidou pra fazer um quadro.” Foi a conta. Corria o ano de 1960, e Shimada passou a falar sobre ioga e seus benefícios na TV, toda semana. “Foi uma divulgação espetacular. Até hoje tem gente que vem contar que a vó começou a fazer ioga depois de me ver na televisão”, relata o professor, que apresentou seu quadro de ioga em diferentes programas femininos durante 15 anos.

O professor autodidata vê com bons olhos a institucionalização da ioga em terras brasileiras. “A faculdade Gama Filho abriu um curso e tem até pós-graduação em ioga, reconhecida pelo MEC. Na FMU também tem.”  Shotaro, contudo, desautoriza as escolas de ioga, sempre com sua calma característica. Para ele só existe uma ioga e ponto. “Criaram várias linhas, mas ioga é uma coisa só. Swastia Ioga, Power Ioga… criaram isso tudo porque querem ser mais importantes do que os outros através de uma linha nova. Mas não tem isso de linha.”

“Sempre fui autodidata. Tudo que falo pros meus alunos já fiz. Se não experimentei não vou repartir com ninguém”, conta o professor, que estudou fisiologia e medicina a fundo. “Certa vez fiquei sabendo de um centro na Índia, reconhecido pelo governo, o Kaivalyadhama. Perto de Bombaim, foi fundado por Suami Kuvalayananda, mestre local que prega a ioga científica”, conta o professor. “Uma colega foi então fazer um estágio nesse centro. Ficou quase um ano e descobriu que não tinha muita diferença entre o que eu estudava como autodidata e o que lecionavam lá. Estive então no Kaivalyadhama e nos filiamos. Fomos a primeira escola da América do Sul a se filiar.

Vegetarianismo e Carnaval
A frequente associação da ioga com o vegetarianismo também é vista com reservas por Shotaro. “Isso não tem nada a ver. Nada, nada, nada. A pessoa diz, ‘ah, eu não como carne porque é coisa viva’. Agora eu pergunto, alface também não é uma coisa viva, ela não tem sentimento? É a mesma coisa. Se você mexe na planta ela responde, não?” O iogue defende o velho e bom equilíbrio na alimentação, com um tanto de verduras, cereais e também carne. E vê o vegetarianismo como uma coisa meio chata. “A pessoa quer ser difícil. Chega ao churrasco e fala ‘ah, eu não como carne’. Aí a dona da casa muito gentilmente faz salada de alface, tomate e cebola. ‘Não como cebola.’ Aí coloca vinagre. ‘Ah, não, tenho que temperar com limão’.”

Pode comer carne e pode beber. Nenhum tipo de negação é saudável, segundo Shotaro. “Lógico, você não deve se embebedar. Mas não tem importância que tome um copo de cerveja, um pouco de vinho… qual o problema?” Shotaro libera até o Carnaval. “Neste mundo de dualidade, de alegria e tristeza, todas as pessoas estão certas, cada uma ao seu nível. Tem quem passe quatro dias do Carnaval em um retiro. Outro dançou as quatro noites. Quem está certo? Os dois estão certos.”
Em um ponto Shotaro não diverge sobre o conceito corrente de ioga: é preciso disciplina. “Levanto 5h30 toda manhã e pratico uma hora, todo dia, antes de qualquer coisa.” Vale registrar que Shotaro mora em um apartamento na rua Frei Caneca. Levanta-se todo dia nesse horário, antes de o sol nascer, e desce pela rua até sua escola na Caio Prado. “A pessoa não imagina quanto a estrutura do nosso corpo é importante. A mente está no corpo. A alma e o espírito estão no corpo também. Então cuide bem dessa casa.”

Agradecimentos Phorte Editora

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