Invasões bárbaras

por Ronaldo Lemos
Trip #175

A política, a ciência, as artes e o direito reagem à chegada das hordas da internet

Antes fechados em si mesmos, campos como a política, a ciência, as artes e o direito reagem como podem à chegada das hordas da internet

Cuidado com as hordas, elas estão mudando tudo. Uma das transformações mais profundas trazidas pela internet são as invasões bárbaras em campos que até pouco tempo atrás viviam (e muito bem, obrigado) fechados em si mesmos. Fundamentais para a “modernidade”, campos autônomos como a política, a ciência, as artes e o direito são todos abalados radicalmente pela chegada dos selvagens trazidos pela rede. E cada um desses campos reage como pode, do seu jeito, contra a turba.

Na política, a invasão atingiu seu ápice nas eleições de 2008. Com um arsenal de ferramentas e comunidades permitindo a qualquer pessoa fazer campanha política, a reação contra os “invasores” não demorou a chegar. E veio violenta. O TSE proibiu qualquer ação na internet que não fosse feita no próprio site do candidato (que precisava usar um endereço “.can.br” e seria automaticamente deletado logo após a votação). Com isso, tornou-se ilegal qualquer campanha feita através do Orkut, YouTube, blogs, Twitter e outras redes sociais que de fato congregam pessoas e permitem o debate. É claro que a proibição não funcionou e serviu principalmente para abarrotar o judiciário e os provedores com pedidos de retirada de conteúdo. Com essa proibição, é legalmente impossível reproduzir aqui o modelo de campanha descentralizada feita por Barack Obama nos EUA.

Na ciência, a situação é semelhante. A produção do conhecimento descentralizou-se de forma radical. A Wikipedia, por exemplo, nada mais é do que uma enciclopédia escrita pelas hordas. Ao mesmo tempo, o número de publicações científicas (ou “pseudocientíficas”) cresceu enormemente na rede. Assim, as fronteiras entre conhecimento leigo e ciência são cada vez mais abaladas. A resposta a isso também é visível. Existe uma revalorização de métodos como o “double-blind peer-review”, em que um artigo precisa ser avaliado severamente entre pares para ser publicado. Existe também um crescimento no uso de sistemas de avaliação externa, como o sistema Qualis, da Capes, que atribui notas às publicações científicas. Com isso, busca-se preservar intactas as fronteiras da ciência, deixando os bárbaros longe dos seus domínios.

Na contramão da história
No campo das artes, o mesmo acontece. A prisão da pichadora na Bienal de 2008 é um símbolo interessante. É como se o domínio das artes plásticas, fechado por natureza, estivesse sendo vítima de sucessivas invasões. A primeira onda corresponde aos artistas de rua, com seus sprays, stickers e outros artefatos “do it yourself”, que tentam ser reconhecidos pelo universo artístico formal ou ao menos se contrapor a ele. A segunda leva, que já dá fortes sinais de chegada, diz respeito aos artistas digitais, que usam computadores, redes e outros bricabraques em seus trabalhos. Essa populosa geração já começa a querer ser reconhecida formalmente como arte. E a reação a ela é curiosa. Ninguém foi preso ainda, como seus colegas da rua, mas existe uma separação formal entre o circuito das artes plásticas e o das artes digitais, cada um com seus próprios eventos e seus próprios domínios, com poucas interseções e muita desconfiança recíproca. Essa separação, entretanto, é artificial e não irá durar. Vai ser interessante observar quando os dois circuitos começarem a se fundir (ou a guerrear).

Por fim, pouco precisa ser dito sobre as invasões bárbaras no campo do direito. No direito autoral, a reação aos invasores é severa. Quando consumidores tornam-se também produtores de obras e o remix se estabelece como uma das principais formas de criação artística, a resposta do direito autoral é enxergar tudo como ilegal e punir os transgressores com penas cada vez mais severas. Obviamente, esses são tempos interessantes. Existe uma frase nos EUA que diz “não se deve apostar contra a internet”. Lembrando que os bárbaros também costumam levar a melhor, é bom não apostar também contra a história.

*Ronaldo Lemos, 32, é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br

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