Henrique Goldman: 'Como você quer ser assassinado?'

por Henrique Goldman
Trip #226

Potencialmente as armas químicas podem matar muito mais gente, muito mais rapidamente e é justo que sejam proibidas

Como você preferiria morrer assassinado com sua família inteira: esmagado sob os escombros de um edifício destruído num bombardeio aéreo ou asfixiado numa nuvem invisível e tóxica de gás sarin? Essa pergunta nefasta está no centro do debate internacional que poderá levar ou não a uma ação militar americana e francesa contra o governo sírio. Segundo a moral e a ética internacionais, bombardeios aéreos, tiros de canhão, obuses e mísseis convencionais são considerados armamentos legítimos. Até legais. Já o uso de armas químicas é considerado um crime de guerra.

A justificar a diferença entre uma forma e outra de aniquilar vidas está o fato de que as armas químicas têm potencial maior de destruição em massa. Mas, segundo as estimativas das Nações Unidas, armas convencionais já mataram mais de 100 mil pessoas no conflito sírio. Cem mil pessoas não podem ser consideradas como uma massa enorme? E por que então as armas convencionais que destruíram as vidas dessas 100 mil pessoas não são também consideradas armas de destruição em massa?

Enquanto em Washington e em Moscou se decide o que fazer com a Síria, no mês passado aqui em Londres foi inaugurada com toda pompa e circunstância a Defence and Security Equipment International, a bienal internacional dos armamentos, uma espécie de Semana de Moda dos assassinos. É a maior feira do gênero no mundo, onde a pior gentalha do universo vem fazer seu shopping. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas visitaram o evento, onde se pode comprar não só mísseis e baterias antimísseis, carros armados, aviões de guerra e fragatas, mas também equipamento de tortura e repressão como cassetetes elétricos, pistolas de choque e algemas para os pés. Tudo isso é legítimo. É business. Está acontecendo num dos berços da democracia ocidental. Ninguém se escandaliza. Os únicos cinco coitados que ousaram se manifestar contra o evento foram presos e acusados de incitação de desordem pública.

Eu adoraria visitar a exposição, mas não é aberta ao público e a organização recusou o meu pedido de ingresso. No site do evento, vi que tem até um pavilhão brasileiro. Podemos nos orgulhar de ser o quarto maior exportador de armas ligeiras. Produzimos cerca de 250 mil armas por ano! Nossas pistolas e bombas de gás lacrimogêneo são um sucesso de vendas internacionais e são usadas para reprimir muitas manifestações pró-democracia no Oriente Médio e pelo mundo afora. Renderam ao país cerca de US$ 350 milhões em exportações em 2011. Tudo isso é aprovado pelo Ministério das Relações Exteriores.

Jogatina podre

Existe, sim, uma grande distinção entre arma química e convencional e, como diria o escritor israelense Amos Oz, não saber distinguir entre um mal e outro é em si um enorme mal. Potencialmente as armas químicas podem matar muito mais gente, muito mais rapidamente e é portanto justo que elas sejam proibidas. Mas que lógica e direito podem justificar a fabricação, o porte e a exportação de armas convencionais enquanto essas também são usadas para extermínio em massa? O argumento da autodefesa não cola nem um pouco. Só vale a lógica da ganância e do abuso de poder.

Vamos começar a mudar o mundo limpando nossas próprias casas. A abolição da fabricação, do porte e da venda de armas deveria fazer parte da pauta de todas as nossas manifestações de rua no Brasil. Temos que pedir ao governo que tire nosso país desta jogatina podre. Vamos pedir aos funcionários da Taurus, da CBC e da Imbel – os maiores fabricantes de armas do país – que mudem de setor. Fabricar armas não é uma atividade decente. Vamos pedir que eles lavem o sangue de suas mãos, que pensem nos filhos dos outros um pouco mais como pensam nos seus.

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br
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