Discutir o futuro da relação entre carros e gente é o desafio dessa edição
As fotografias do mexicano Enrique Metinides são profundamente incômodas. Menos pelo sangue e pelas chocantes cenas de acidentes e de suas vítimas e mais porque, de alguma forma, antecipam com crueza um dos grandes paradoxos dos tempos modernos. Os chamados automóveis, máquinas interessantíssimas aperfeiçoadas a partir do início do século passado, que propunham mobilidade fantástica e que no auge da era industrial de fato entregavam versões mais imponentes dos sapatos com asas de mercúrio a qualquer mortal com algum poder aquisitivo, enquanto se tornavam objetos de desejo de multidões, começavam precocemente a se revelar um gigantesco e assombroso problema. A tecnologia fantástica, capaz de gerar empregos em massa e de produzir deslocamento em standards de velocidade, prazer e conforto antes inimagináveis, de repente virava arma de destruição de vidas, agente detonador do ar e do meio ambiente, elemento de obstrução do espaço público, protagonista da imobilidade e símbolo de insalubridade. Importante frisar que Enrique fotografava acidentes nas ruas do México para os jornais daquele país entre os anos 1960 e 1980.
Décadas depois, o paradoxo só se agrava. Enquanto pensadores do calibre do arquiteto Paulo Mendes da Rocha lançam perguntas difíceis de responder, como qual é a lógica contida no fato de termos uma montanha de ferro, aço e plástico de 5 toneladas usada para carregar 70 quilos de ser humano de um lado para outro, a indústria se supera em lançar máquinas que cumprem promessas impensáveis. De acelerações dignas de aeronaves a jato a veículos elétricos; de interiores feitos à mão a desenhos e funcionalidades de cair o queixo.
Uma família da tão falada classe C brasileira conquista, com seu primeiro carro, acesso a experiências, informações e sensações que até ali pertenciam a um mundo exógeno e impenetrável. Ao mesmo tempo engrossam as fileiras dos exércitos motorizados de representantes das classes A e B, reforçando as toneladas de lixo gasoso lançadas na atmosfera, a queima de combustíveis fósseis e entupindo, como gotas extras de colesterol, as veias com 90% de obstrução dos sistemas viários das principais cidades, em estado permanente de trombose. Ao mesmo tempo em que se torna verdadeiramente complicado imaginar o mundo de hoje rodando sem o auxílio dessas máquinas incríveis e libertadoras, é cada vez mais difícil ignorar o que elas de fato representam quando se amontoam em quantidades sem limites. Num tempo de transição radical, em que parece urgente reumanizar a vida e repensar o que realmente precisamos fazer para que o mundo não exploda, não é mais aceitável, por exemplo, medir o desenvolvimento de uma nação e de sua economia apenas somando dados simplórios e enviesados como o número de automóveis fabricados e vendidos, como se isso isoladamente representasse um avanço enorme e sem contraindicações.
Discutir o futuro da relação, tão interessante quanto difícil de sustentar, entre carros, gente, cidades, comunidades, atmosfera, ambiente, vida e futuro é o desafio dessa edição.
Paulo Lima, editor