Grávido e honesto

por Carlos Nader
Trip #182

Do mesmo jeito que não existe mulher meio grávida, não há pessoa 100% honesta

Se eu for realmente honesto, vou logo de cara admitir que em termos absolutos a honestidade não é algo que eu conheça. Nem é algo que exista concretamente. Simples assim. Alguém aí conhece uma só pessoa 100% honesta, 100% do tempo?

 

A resposta para essa pergunta é uma das poucas certezas da vida. É importante tê-la em mente para lembrar que honestidade é apenas um norte, uma tendência. E que, quando posta em prática, se transforma numa qualidade sempre relativa e contingente. Vou no popular: honestidade é o contrário de gravidez. Só existe em frações. Se você nunca viu ninguém meio grávido, pode ter certeza de que também nunca viu ninguém inteiro honesto.

Se for para acreditar em lenda, sugiro a do saci-pererê, que deu um personagem divertidíssimo nos livros do Monteiro Lobato. A lenda de uma honestidade impávida, heroica, retumbante, idolatrada, salve, salve é tão equivocada quanto a Vanusa cantando o hino nacional. E não só equivocada, mas também nefasta. Uma honestidade mistificada é um dos principais entraves para a realização de uma honestidade possível. Sobretudo num mundo real em que até a mentira tem sua função histórica, inclusive para garantir, em diversas ocasiões, a paz. Da conjugal à mundial.

É verdade, eu sei, que a relatividade da honestidade acaba muitas vezes se transformando num álibi hipócrita, numa justificativa putativa raptada pelos desonestos para validar sua própria desonestidade. O Congresso Nacional está cheio de honestos relativos. Já no extremo oposto, os amantes da honestidade costumam defendê-la com aqueles argumentos mistificadores que conhecemos bem, ligados à Moral ou à Religião, geralmente assim, com iniciais maiúsculas, para ressaltar seu caráter supostamente puro e absoluto. Trocando em miúdos, temos, de um lado, gente usando argumentos certos para fazer coisas erradas e, de outro lado, gente usando argumentos errados para fazer coisas certas.

Bigode do Mercadante
Condições cruzadas como essas intensificam uma associação que o imaginário popular deste mundo real, material, já faz há séculos, entre honestidade e burrice. E entre desonestidade e esperteza. Enquanto os sinais não forem reinvertidos, o valor de ser honesto aqui na Terra será tão absoluto quanto uma renúncia irrevogável do Aloísio Mercadante.

Felizmente o beco é com saída e meu plano para salvar o mundo tem só três pontos. O primeiro é raptar de volta a relatividade da honestidade. Trazê-la para o campo dos honestos, sem cair na tentação de confiná-la ao cativeiro da moral, que Rimbaud chamou de "a fraqueza do cérebro". Só uma honestidade que faça sentido racional sobrevive. O resto é conversa para o rebanho de ovelhas dormir.

O segundo ponto é reconhecer que a punição é a mãe da honestidade. Essa é outra verdade que alguns mistificadores tendem a negar, mas que resplandece em raios fúlgidos bem debaixo dos nossos narizes, por maiores que sejam, feito um bigode do Aloísio Mercadante. Quem aqui usava cinto de segurança antes das multas? Ninguém. É preciso, sempre, convencer o mais lerdo ou o mais sapeca dos cérebros que seu portador será punido caso aja desonestamente e que essa punição será também relativa, ou seja, proporcional à desonestidade cometida.

E aí tem o terceiro ponto. Talvez o mais importante. Talvez o mais complicado. É preciso que a coletividade internacional de cérebros se convença de uma vez por todas de que a vida é uma internet de corpos e almas, profunda e delicadamente conectados, onde a honestidade é parte fundamental de um protocolo de boa convivência. Esse é o ponto fundamental. Talvez o mais complicado? Talvez o mais simples.

*Carlos Nader, 43, é diretor do documentário Pan-Cinema Permanente. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com

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