O colunista e sua luta para baixar o índice de 70% de reincidência nos presídios brasileiros
O céu derrama seus azuis profundos recamados de um cinza fumaça.
O sol vem manso por cima das lajes e telhados, me fazendo querer tirar a camisa. “Gracias a la vida, que me a dado tanto...” e segue por aí afora Mercedes Sosa.
Graças à vida, nunca mais seremos os mesmos. Aprendemos a nos conter, a suportar e a esperar um pouco pelo menos, sem perder a espontaneidade.
Ceder sem conceder porque, principalmente, aprendemos a chorar de dor. Isso nos tornou mais humildes, generosos e também capazes de chorar da alegria de viver.
Digo isso porque acabo de concluir um livro, depois de três metódicas revisões de composição. Claro, agora virão as trocentas revisões antes de entregar para a editora.
O livro versa sobre uma comparação rápida do mundo que deixei aqui fora, quando fui preso, e o mundo que encontro, ao retornar mais de 30 anos depois.
A conclusão dessa análise assim rápida é que muita coisa melhorou. Até naquelas que pioraram, ainda assim ampliaram. A brutalidade andou cedendo espaço, embora pareça que não. Os números não mentem. Claro que existem aqueles que os interpretam. Parece ainda que o caos vai tomando conta das coisas, embora dê para perceber também que há saberes e conhecimentos que poderão nos salvar.
Tudo aqui fora me interessa demais. Há espaço para meu desenvolvimento pessoal. Há um campo infinito para quem não tem medo de lutar pelo que vale. O que não falta é gente amiga disposta a encaminhar. Senti que, se todos os problemas tivessem sido resolvidos, não haveria espaço para que eu me realizasse como pessoa.
Por exemplo: aposto que muita gente pensou em tentar preencher um buraco enorme que há na tessitura social. O que fazer para possibilitar ao homem egresso da prisão a reintegração social? O índice de reincidência ultrapassa 70%. Fora os que são mortos pela polícia. Quem esteve preso, não volta sem oferecer total resistência.
Mas fui eu quem surgiu com a idéia, a partir de minhas dificuldades como egresso, de montar o Guia de Apoio à Cidadania. A primeira condição de cidadania é a documentação. O egresso das prisões não sabe nada sobre as dificuldades que encontrará. Eu, por exemplo, quase não consigo votar nesta eleição. Foram exigidos documentos que demandaram cerca de dois anos inteiros de luta para que pudesse obtê-los. Votei pela primeira vez, depois de 54 anos de vida. Ninguém imagina o quanto foi importante apertar as teclas. Aquele ato foi o símbolo de minha cidadania conquistada.
Claro, como todo brasileiro, sei que, por mais que estiquem o chiclete, ele vai ficar do mesmo tamanho. O país está engessado ao seu passado de tal modo que somente Deus ou a natureza podem dar um jeito, infelizmente. É muito triste meu primeiro voto ter que ser assim, sem muita convicção. O poder corrompe, eu sei, mas a falta de poder corrompe mais ainda. Fazer o que então?
Estou fazendo minha parte. O contrato para a realização do Guia já foi assinado e estamos entrando em fase de investigação e colheita de informações. Listaremos albergues noturnos, agências de empregos, hospitais públicos, organizações não-governamentais que possam apoiar o egresso, procuraremos apoio em universidades, em entidades empresariais, enfim, tentaremos aglutinar espaços que os egressos das prisões paulistas possam utilizar na luta pela reintegração.
O Guia será entregue às pessoas presas que estejam próximas da data de alcançar a liberdade. Haverá um cursinho rápido de esclarecimento. O preso não será mais colocado para fora das prisões tão alienado e insciente quanto eu estive. Por sorte tenho muitos amigos que me apoiaram. E apóiam, pois, absolutamente, não estou salvo ainda. Dois anos e meio é pouco tempo aqui fora para quem ficou tanto tempo internado. As conseqüências, evidentemente, são graves.
Agora caminho para uma outra realização: o Centro de Apoio ao Egresso. Já o tenho em mente há anos e tenho certeza de que o realizarei. Sempre foi assim. Considero a vontade imperiosa. Ela determina o momento. Não fora a vontade humana e não haveria civilização.
O livro me fez concluir que nem tudo me agrada, mas ainda assim tudo é lindo e maravilhoso aqui fora, até o que dói. Mas o mais importante foi constatar que tudo está plástico, imenso e infinito. Nada é inamovível, nem as montanhas de Maomé. Tudo é factível de evolução e crescimento, inclusive o que à primeira vista possa parecer negativo.
O instante é grave, mas, “gracias a la vida”, cabemos todos nele. O espaço é único para todos, mas está aberto para cada um desenvolver sua luta. Isso é tudo o que pode desejar um homem como eu.