Advogado que conviveu com artista por muitos anos desmitifica o cantor e compositor
Só conheci pessoalmente Geraldo Vandré quando este retornou de seu exílio. Todos sabem o que havia acontecido. Vandré havia ganho o Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, com a música "Para Não Dizer que Não Falei de Flores". Era 1968 e Maracanãzinho lotado havia aplaudido e cantado com ele o que logo se tornaria um hino dos que queriam o retorno da democracia...
Imediatamente todas as mídias imediatamente começaram a noticiar que os militares no poder sentiam-se desafiados, que a música seria proibida e que era iminente a sua prisão. Vandré foi aconselhado por muitos a sair às pressas do Brasil. Basta lembrar que outros artistas também (em outros momentos e outras circunstâncias) também se viram coagidos a deixar nosso país.
Foi para o Chile, lá chegou a gravar em castelhano uma versão da música vitoriosa, mas quando Eduardo Frei foi derrubado, só restou aos exilados brasileiros que lá estavam fugirem para outros países. Não me recordo exatamente para onde foi Vandré. Mas acabou na França, onde ficou até retornar.
Enquanto isto, por aqui, Vandré, que era funcionário licenciado da então existente SUNAB foi demitido com base no AI-5. Repetia-se que suas músicas, especialmente a que ganhara o festival, estavam censuradas, que ele estava sendo procurado, e até mesmo, que estava sendo processado pela Justiça Militar, à revelia, com base na lei de segurança nacional que a época previa, inclusive, a pena de morte.
Sua família exasperou-se. Ele, lá, não conseguia qualquer notícia real do que verdadeiramente estava ocorrendo. Foi assim que resolveu voltar e enfrentar o que realmente houvesse contra ele. O que Vandré encontrou aqui foi surreal. Não lhe pagavam os direitos autorais, as rádios diziam não tocar suas músicas, pois estariam censuradas, mas todas as pessoas tinham seus discos e não se encontrou qualquer ato oficial de censura.
O processo da SUNAB não tinha qualquer conteúdo, mas tão somente a publicação do que teria sido o ato punitivo assinado por Costa e Silva, então presidente da república. Foi recebido pelos militares no aeroporto, detido, ouvido sem qualquer processo, e nunca mais chamado.
Teve de despender enorme esforço para descobrir no Rio de Janeiro, um simulacro de inquérito militar, sem andamento formal e que somente tinha recortes de jornais. Quis discutir judicialmente sua demissão, mas os atos praticados com base no AI-5, não eram suscetíveis de apreciação judicial.
Vandré que era formado em direito e inscrito na OAB, impetrou um Mandado de Segurança na Justiça Federal, redigido de próprio punho e onde dizia que nem o AI-5 e nem a Constituição de 1967 podiam ser aplicados, pois não tinham qualquer validade. Foi rejeitado sumariamente.
Logo percebeu-se vítima de uma grande e enorme farsa, que arrasara sua vida, como a de tantos outros. Era procurado por jornalistas que só estavam interessados em saber se havia sido preso e torturado quando chegara ao Brasil, se tinha composto no exílio e quando e como pretendia voltar a apresentar-se. Vinham agentes com propostas mirabolantes, vinham políticos que queriam saber de suas posições. Mas tudo sempre em “off”. Era o mito que interessava, não a verdade, não o cidadão Geraldo Pedroso de Araujo Dias, suas convicções e sua vida alterada pela mentira e medo geral.
Diante de tal quadro de covardia e conformismo, Vandré teve uma atitude única, corajosa e definitiva de rebeldia: retirou-se deliberadamente da vida civil: negou-se a cantar no Brasil, negou continuamente autorizações para uso de suas obras, tentou até proibir as suas execuções. Se o haviam transformado em mito e se somente nele estavam interessados, ele o proscreveria. Geraldo Vandré, o cidadão, era dono de si mesmo.
Tudo o que queriam ver no mito, ele buscou intencionalmente contrariar. Certamente não conseguiu nestes anos todos. Logo cuidaram de taxá-lo de paranóico e deixá-lo de lado para ficar com a figura mítica que está até hoje presente em nossa história. Dizem que embora anistiado (do que, afinal, pergunta ele) continuou lutando anos e anos no processo administrativo que instaurou.
Querem ver o Vandré real? Já não o vejo há algum tempo, não sei sequer se está vivo ou não. Mas querendo, procurem-no no centro de São Paulo, com sua barba hoje embranquecida, seu gorro, seu casacão ou capa, sempre andando de depressa, cabeça a mil, onde estão gravadas não só suas letras, mas todas as muitas poesias que admirou e que, dependendo do dia, da hora e da sorte do ouvinte, será capaz de declamar sem perder um verso.
(*) Décio Sanchis é advogado e tio de Renata Leão, editora-chefe da revista TPM