por Henrique Goldman
Trip #216

Veículo, raro na Europa, “É Land Rover de pobre”, segundo um jovem boiadeiro de MG

Em uma recente viagem de carro por Minas Gerais com minha mulher e meu filho, nos deparamos com algo totalmente desconhecido por nós: por lá sobrevivem, circulando por estradas esburacadas e pequenos vilarejos, milhares de Fuscas. Digo Fusca de verdade, não esse Fusca novo, caranga de coxinha. Parado num posto de gasolina em Varginha, um jovem boiadeiro com cabelo de Neymar, olhando orgulhoso para seu Fuscão bem incrementex com aerofólio e talas largas, me explicou que Fusca é Land Rover de pobre.

A coisa nos fascinou muito e, espontaneamente, fomos inventando um simples jogo. Cada vez que aparecia um Fusca na estrada, o primeiro a gritar “Fusca!” ganhava um ponto. Com o passar dos dias, novas regras foram criadas e o jogo foi ganhando complexidade. Por exemplo: pelo menos dois participantes tinham que ver o mesmo Fusca para que um ponto fosse considerado válido. Ou então: passou-se a não aceitar pontuação para um Fusca que já tivesse sido visto anteriormente no mesmo dia (mas no dia seguinte esse mesmo Fusca podia pontuar novamente). Ou ainda: o participante que gritasse “Fusca!” por engano era punido com a perda de um ponto.

No final de cada dia de viagem somávamos os pontos e o primeiro colocado era o campeão do dia. No final da viagem contaríamos os dias em que cada um ganhou e, assim, se consagraria o campeão.

TENSÃO

Mas a competição foi ficando muito acirrada, cada um de nós três com sua enorme sede de vitória. Com o passar dos dias, a tensão no carro foi ficando insuportável. Meu filho, que tem 5 anos, chorava como um desesperado a cada vez que perdia um ponto. Em um certo momento, eu e minha mulher nos surpreendemos tendo uma discussão grave por causa de um Fusca que cada um de nós dizia ter anunciado primeiro. O jogo estava estragando a viagem.

Em Ouro Preto, onde junto à memória dos Inconfidentes sobrevivem muitos Fuscas, resolvi, para o bem-estar da família, abandonar a competição. Disse ao meu filho que dali por diante eu doaria a ele todos os meus pontos. Minha esposa concordou em fazer o mesmo, e o menino, feliz da vida, passou a acumular toda a pontuação.

Não poderíamos ter encontrado uma solução melhor. Não só porque a viagem ficou bem mais tranquila, mas também porque cada vez que meu filho não se comportasse poderíamos usar uma nova arma: “Se você não obedecer, vamos cancelar dez ‘pontos Fusca’”. A chantagem funcionava na hora.

Voltamos para a Inglaterra há mais de um mês, mas até hoje não tínhamos cruzado com nenhum Fusca. Meu filho várias vezes reclamou: “Papai, por que aqui não tem Fusca?”. É difícil explicar certas coisas para crianças. Já tínhamos perdido a esperança.

Hoje de manhã, levando meu filho para a escola sob a garoa fria e cinzenta, vimos surgir, no meio do trânsito, um lindo Fuscão, dourado como um raio de sol e ainda por cima com capota de vinil! O Fusca parou no farol e cruzou a Edgware Road como um enorme pão de queijo sobre rodas. Meu filho logo gritou: “Fusca!”.

Nossa, que puta saudade de Minas!

 

*HENRIQUE GOLDMAN, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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