O funk invade as quebradas paulistanas e desbanca a principal expressão cultural, o hip hop
Por muitos anos, o hip hop foi a principal expressão cultural da periferia de São Paulo. Mas o funk carioca invadiu quebradas e se tornou a trilha dominante da cidade. Na paisagem da noite paulistana, saem o discurso político, o passo quebrado, a roupa larga; entram a letra de putaria, a dança até o chão, a calça agarrada
Madrugada de sábado em São Paulo. A trilha é de batidas fortes, graves, africanas, corpos se movem na pista, o clima é de pegada. Mas ela não beija nem pega geral. Ela quer dançar. Bumbum para o alto e para baixo, para a frente e para trás, mãos nos joelhos, calça agarrada, suor escorrendo na pele. Os homens pouco se movimentam, observam com lascívia e imaginam se ela faz tudo isso na hora H, embalados pelas letras que narram as sacanagens que permeiam o encontro. O DJ avisa: vai começar a putaria!
Esse é o clima que dominou bailes, festas e casas noturnas em São Paulo, seja no extremo da zona sul, em casas como Maria Mariah, Galpão Night e Fênix; na zona leste, no Expresso Brasil; na zona norte, no Arena Beer; na Vila Madalena, no Black Bom Bom; ou ainda na Vila Olímpia, no Santa Aldeia. O responsável por essa cena é o perseguido, renegado, admirado e aclamado funk carioca. O ritmo subiu a serra e fez residência em São Paulo, berço incontestável da cultura hip hop no Brasil, cidade que sempre teve suas mazelas retratadas pelo rap. Mas o funk não se fez de rogado e, sem o mínimo constrangimento, invadiu quebradas, casas e a cabeça da rapaziada.
A questão entre o funk e o rap já gerou muita discussão, e há até quem afirme que o primeiro tomou de assalto o espaço do segundo em São Paulo. Para WD, MC do grupo Consciência Humana, um dos maiores grupos de hip hop de São Paulo, “o rap teve sua fase e vai ter novamente, assim como o funk logo deve entrar em decadência, é o ciclo da música”. Na opinião de WD, “o rap não perdeu espaço, só está em fase de renovação, de reestruturação, de reinvenção”.
Mulheres de volta
Hoje pode-se ouvir funk carioca na maioria absoluta das baladas em São Paulo. O estilo caiu nas graças do mercado popular com uma força próxima à do forró nos anos 90. “Quando o assunto é pista de dança, percebe-se que o funk foi mais assimilado pelo público do que o rap, que geralmente não é dançante”, afirma o produtor de eventos Primo Preto.
Idealizador da equipe de bailes Rap Soul Funk e um dos primeiros a trazer ofunk carioca para São Paulo, o produtor de eventos Primo Preto acha que o funk fez sucesso em São Paulo porque o ritmo resgatou a presença feminina nos bailes. “O funk trouxe a mulherada para a pista e resgatou a sensualidade, enquanto no rap a presença feminina foi masculinizada pelas calças largas”, afirma.
Um dos DJs que incentivaram a disseminação do ritmo na capital paulista foi o carioca Zé Colméia, que toca no Black Bom Bom, na Vila Madalena, durante as festas da Rap Soul Funk. Ele conta que há cinco anos o público ainda era resistente, mas hoje suas noites no Black Bom Bom são um sucesso, e ele se tornou um dos DJs mais requisitados em São Paulo. Para ele, o funk estourou na cidade devido às letras, sensuais e alegres, e à batida dançante.
Para donos de casas noturnas, produtores de eventos e músicos, a identificação com o funk também está vinculada ao fato de o Brasil ser um país sexualizado. Essa é a opinião, por exemplo, dos donos do Galpão Night – casa noturna localizada no Capão Redondo e que, sem inauguração oficial, já reúne cerca de 4 mil pessoas por fim de semana –, Luciano e James. Eles acreditam que está na hora da onda do funk.
Os DJs e MCs de funk que se apresentam na casa são da própria região e têm público cativo. DJ Hermê, MC Pé e MC Ico provam que São Paulo está criando sua própria cena. “Incentivamos o funk carioca produzido no Capão. No Galpão, levamos os músicos da quebrada”, afirmam os donos. Os MCs de funk costumam fazer sucesso nas próprias comunidades.
O MC Zóio de Gato é um bom exemplo disso: com 16 anos, é um dos destaques do funk paulista. Seu primeiro sucesso foi um proibidão chamado “1º comando”, que fala sobre o Primeiro Comando da Capital, o PCC. Nascido na Vila Natal, bairro da região do Grajaú, na zona sul, Zóio de Gato formou o Bonde da Vila Natal, no qual reúne outros MCs da comunidade. O Bonde da VN, como é conhecido, já virou marca de roupa, e suas camisetas são disputadas pelos fãs. “Meu primeiro contato com o funk aconteceu há dois anos. Cada estilo musical tem seu espaço na quebrada, mas agora é a vez do funk”, afirma Zóio.
Tá dominado
Hoje, cerca de 25 casas noturnas apresentam atrações semanais de funk carioca em São Paulo, com um público médio de 3 mil pessoas por noite em cada clube. A capital se rendeu ao batidão e já possui seu próprio circuito de festas, DJs e artistas. Um termômetro eficaz para você identificar o som que está pegando nas ruas são os carros, que hoje bombam a batida do funk.
É o que acontece na Vila Fundão, no Capão Redondo, onde rolam festas organizadas pela comunidade, como a famosa Quermesse da Fundão, que reúne 6 mil pessoas por fim de semana durante o mês de julho, ou o Samba da Vila Fundão, que acontece todas as tardes de domingo. Nos intervalos da roda de samba, organizada com o objetivo de arrecadar dinheiro para a construção da sede da comunidade, o funk balança a mulherada. “Há uns dois anos é o funk que toca nas festas na quebrada”, afirma
Canu, um dos organizadores. “Ele fez com que as pessoas saíssem de casa para se divertir, mas o rap também sempre estará presente”, afirma. A trilha sonora de um baile black, no centro expandido de São Paulo ou “da ponte pra lá”, é caracterizada principalmente pelo funk da baixada santista e pelo funk de putaria (com letras que abordam temas sensuais), mais até do que o proibidão, vertente que versa sobre criminalidade. Muitas letras falam sobre as “novinhas”, expressão utilizada para as meninas de 13, 14 anos – uma vertente que o rapper WD classifica como tema de “pedófilos enrustidos”.
Para ele, “a ‘novinha’ prejudica as meninas porque não dá valor para a mulher”, afirma. “Nosso país é uma contradição. Em um canal de TV discutem sobre pedofilia, em outro você vê a Mulher Melancia mostrando o pacote.” Influenciados pelo funk carioca, artistas e músicos da baixada santista também desenvolveram um cenário próprio.
MC Duda do Marapé e MC Barriga são alguns dos destaques da região, e o público paulista se identifica com suas letras, pois elas abordam fatos mais próximos do cotidiano de São Paulo. Duda do Marapé lançou o sucesso “Cai lágrimas”, em que narra as dificuldades da prisão e a saudade dos parentes. O santista já cantou ao lado de Menor do Chapa, MC carioca que rima sobre o sofrimento dos morros e sempre lança frases do Racionais MC`s nos shows. A casa noturna Maria Mariah, na beira da represa do Guarapiranga e pioneira na realização de bailes funk na capital, tem uma de suas noites dedicada apenas ao funk da baixada santista.
O carioca Mr. Catra, conhecido como “o rei do baile funk”, acredita que o funk produzido na baixada santista está no rumo certo: “A baixada concentra o movimento do funk consciente no país”, ele diz, referindo-se ao estilo que trata do sofrimento da favela. “O funk estourou porque outros movimentos deixaram lacunas como a falta de suingue, de ideia jovem, do cotidiano”, acredita. “O funk tem uma raiz brasileira, elementos de samba, forró, baião, jongo, candomblé...”
Para o DJ carioca Sany Pitbull, que começou na pioneira equipe de som Live e agora comanda a PitBull no Rio de Janeiro, “Santos, influenciado pelo rap e pela batida do funk, originou um estilo característico”.
Queridinho de casas noturnas como o Bar Secreto, em Pinheiros, Sany não vê a putaria com bons olhos: “A gente tem história, a gente apanhou muito da polícia, sofreu com o preconceito, tem uma cultura e uma musicalidade que precisam ser vistas além da putaria”.
Pré-história do tamborzão
O funk carioca amadureceu a partir dos bailes de black music realizados no Rio de Janeiro nos anos 70 e absorveu as manifestações culturais das favelas e periferias. Mas poucos poderiam imaginar que os sistemas de som hi-fi – várias caixas de som ligadas ao mesmo tempo – que sonorizavam as antigas festas se tornariam os paredões de 30.000 W de potência dos bailes funk. No exterior, o funk é visto como “a” música eletrônica brasileira contemporânea. O jornal New York Times reconheceu a importância cultural desse movimento e declarou que o funk carioca é “o novo samba”. Mas, para que o novo estilo musical ultrapassasse as fronteiras do Rio e se tornasse um fenômeno nacional, foram necessárias várias inovações no ritmo americano. Muitos especialistas acreditam que o funk dominou o Brasil – e a capital paulista em particular – após o surgimento do tamborzão. Esse novo ritmo é a releitura brasileira dos beats usados pelo funk americano, sampleados de álbuns como 808 Voltmix, do DJ Battery Brian, ou do The Challenger, do Dr. Jeckyll & Mr. Hyde.
O instrumental desses discos eram tocados nos bailes cariocas pelos DJs, e os MCs cantavam em cima. A paternidade do tamborzão é controversa. Não há arquivos digitais ou datas que comprovem a autoria desse ou daquele produtor, mas a maioria dos artistas acredita que essa batida surgiu na zona oeste do Rio de Janeiro. Foi criada pelo ex-locutor, produtor e DJ Luciano Oliveira, hoje famoso na voz de “Pega o sabãozinho”, sucesso nos bailes cariocas. Ele procurava, no fim dos anos 90, um tempero diferente pro funk e descobriu um som de atabaque grave na bateria eletrônica Roland R-8. Luciano também aumentou o BPM do estilo: as 124 batidas por minuto subiram para 129. Ele não imaginava que sua invenção seria o funk de hoje, por isso não se preocupou em guardar o beat original. Em 1998, o DJ Cabide, na época integrante da equipe de som A Gota, teve acesso ao novo ritmo criado por Luciano e produziu a montagem “UUU a gota”, responsável por lançar a batida presente na maioria dos hits do gênero.