Forte como um búfalo

por Décio Galina
Trip #164

Trip vai ao Pará para mostrar como é a desconhecida (e 100% brasileira) luta marajoara

Duro. Firme. Forte como um búfalo. Quase um poste. Difícil esquecer aquele tranco. Que surpresa. Abracei Jovêncio pensando que encontraria um corpo flácido, delicado, frágil. Afinal, tenho 35 anos; ele, 102. Que inocência. Nos atracamos com meu ombro direito colado no dele, a mão direita dele me agarrando pelas costas, a mão esquerda tirando a minha direita, não permitindo que puxasse sua cintura. Forcei o corpo de novo. Sem progresso. Empuxos equivalentes. Estancamos. Não se tratava de uma impressão. Era fato. Jovêncio parecia pregado no chão. No silêncio do calor de Soure, na ilha de Marajó, só ouvia meu coração acelerar. Jovêncio nem grunhir grunhia. Desisti para evitar vexames maiores. Melhor mesmo era retomar a conversa e recorrer às palavras para duelar com a principal estrela da velha guarda da luta marajoara (também conhecida como agarrada), modalidade secular de Marajó que se parece com a greco-romana.

Tem medo de morrer? "Quando Deus precisar, a gente tem que ir. Os que estão vivos enterram os mortos. Eu quero ter vida, saúde e o conhecimento das pessoas.” Jovêncio Amador nasceu dia 30 de outubro de 1906, na fazenda Tucumã. É o mais velho da ilha. Pôs no mundo sete filhos e três filhas que se desdobraram em 19 netos, sete bisnetos e dois tataranetos. “Até hoje não tive tristeza. Só quando minha mulher morreu [dona Oscarina Martins]. Mas o tempo tinha que passar, e a tristeza também. Depois arrumei outra mulher."

 

 

O que faz para manter o corpo e essa saúde de ferro? "Como bem, durmo bem. Gosto de frito do vaqueiro [carne de búfalo cozida e conservada na própria gordura] e farinha desde os tempos da fazenda, quando passava dias cercando búfalo ou, no inverno, quando pegava búfalo de canoa: ele vinha pra cima e eu atirava de fuzil. Não podia errar. Era ele ou eu. Nunca fui chifrado. Depois salgava a carne e tirava o couro. Eu era perigoso." E a luta marajoara era praticada só em festas ou fazia parte do cotidiano dos vaqueiros? "Luta era sempre, todo dia. Na hora do banho, perto do açude, a turma ficava pelada, ensaboada, e aí era mais difícil ainda de pegar. Todo mundo lutava na fazenda. Ninguém queria perder."

Como é a rotina do senhor hoje, na cidade? "Acordo quatro horas da manhã, durmo na rede às sete da noite, gosto de televisão, o que aparece eu vejo, tomo quatro banhos frios por dia e não me enxugo – só seco o pinto. Às vezes sonho com cavalo ou burro, jogo no bicho, mas nunca acerto." Antes de deixar Jovêncio sossegado na rede, pedi para ele soltar a voz e emitir o famoso uivo que utilizava para arrebanhar as cabeças de gado espalhadas por esse mundão – e digo a vocês que até hoje aquele berro ecoa mente adentro.

Depois de ouvir a história da ilha em pessoa, a missão era descobrir quem compõe a nova geração da luta marajoara. Um resumo curto e grosso das regras: em uma arena quadrada, de 8 m de lado, vence quem toca as costas do oponente no chão – no caso de um combate equilibrado, leva a melhor quem atacou mais. É praxe a disputa de uma "melhor de três" – daí a explicação da expressão "te dou duas quedas no zero", típica provocação que um lutador faz para o outro antes de o bicho pegar.

Não vale estrangular
No início da luta, os atletas emparelham os pés à frente, numa posição chamada "pés casados". Nesse momento, as mãos devem estar espalmadas, bem próximas às do adversário, mas sem encostar – só com o sinal do árbitro é que eles se atracam. Boa parte da luta acontece com os atletas em pé. No solo, o árbitro interrompe a ação caso o combate fique travado. Não é permitido chutar, socar, torcer ou estrangular. O que vale mesmo é agarrar e jogar o oponente de costas no chão – e um dos caminhos prediletos para a vitória é a calçada, quando, de cabeça baixa, o lutador tenta laçar o adversário pelas pernas (um bom contragolpe é a recalçada, quando o atacado busca uma posição ainda mais baixa para surpreender).

De acordo com João de Deus, historiador e vice-diretor da Escola Gasparino, em Soure, a origem da luta data do século 18, criada pelos índios e depois adaptada por negros que chegaram para trabalhar na região e introduziram técnicas africanas no embate. Tal mistura, então, foi perpetuada pela prática freqüente nas fazendas e, às vezes, para resolver desavenças que surgiam durante festas de sábado. “Para não estragar a diversão alheia, marcavam a luta para domingo cedo, na praça do mercado”, explica João.

A fama de um ótimo lutador de uma fazenda logo reverberava na propriedade vizinha – e aí não demorava para acontecer o duelo de titãs. Com o surgimento de cidades, os pais ensinavam o bê-á-bá das técnicas para seus filhos de 3 ou 4 anos. Quando um vaqueiro trazia a notícia que o fulano de tal idade estava dando o que falar numa fazenda, o pai de um moleque da cidade preparava o filho para desafiar o bambambã rural – e não podia fazer feio; caso contrário, o menino acabava apanhando do pai, do tio, do avô. Luta marajoara é coisa séria – não é para a família passar vergonha.

A modalidade esteve prestes a sumir do mapa graças às profundas alterações na sociedade local nas últimas décadas. Com o declínio da educação oferecida nas próprias fazendas, jovens passaram a concluir seus estudos na cidade e desistiram de retornar ao campo. Propriedades gigantescas, antes sinônimo de farta produtividade, faliram ou foram abandonadas. A falta de um calendário anual de lutas favoreceu o desinteresse pela tradição secular – atualmente os torneios só acontecem esporadicamente em festas religiosas (como a de São Sebastião, em Cachoeira do Arari) ou em festas de aniversário de município (como em Soure e Salvaterra).

O empresário (dono da boate Labirintus) e radialista Leandro Antonio Lobo Gavinho, de Soure, está fazendo das tripas coração para reverter essa situação. Com o apoio do historiador João de Deus e de políticos como Carlos Augusto Nunes Gouveia, Gavinho procura deixar a luta marajoara mais competitiva, criando categorias por peso e proibindo golpes, como a recolhida e a enfincada, que podem ser fatais – em alguns municípios da ilha de Marajó ainda não há divisão de categoria e todos os golpes são permitidos.

Foi Gavinho quem pinçou, a pedido da reportagem da Trip, três dos principais nomes da nova geração da luta marajoara para um desafio que definisse quem é melhor: Luis Antonio, o Toninho, de 24 anos (seu filho caçula); Iuri Cléber Cardoso Almeida, de 27 anos; e Luís Augusto, o Luisinho, de 23 anos, que trabalha como
voluntário civil na Polícia Militar de Soure. “Meu avô me ensinou a luta, e eu já estou ensinando meu filho, que tem 3 anos”, conta Luisinho. "O problema é que o menino é muito bravo e ainda não entendeu: quando derrubo ele no chão, ele pega pau, pedra e joga em mim." Toninho foi credenciado ao triangular após ter surpreendido
Fereco, um lutador mais velho, extremamente respeitado, famoso por ninguém conseguir derrubá-lo. “Vamos dar uma engatada?”, disse Fereco chamando Toninho para a luta. O rapaz aceitou e acabou levantando seu oponente na altura dos ombros, arremessando-o em seguida ao chão.

O desafio Trip aconteceu em duas autênticas locações de Marajó (ilha a três horas de navio de Belém, cercada pelo Atlântico e pelos rios Amazonas e Tocantins): praia do Pesqueiro (belíssimo lugar para ver pássaros como o avermelhado guará), a 11 km de Soure, e fazenda Bom Jesus, cinematográfica propriedade da atenciosa descendente de libaneses Eva Maria Daher Abufaiad (ótimo local para ver corrida de búfalos). Nas duas ocasiões, por mais que os três lutadores fossem amigos e se conhecessem de longa data, o que se viu foi um pega-pra-capar de alta voltagem.

Na areia fofa da praia, Iuri quase tocou as costas de Toninho no solo, mas, como um gato, ele se virou no ar e conseguiu evitar a derrota instantânea. Na fazenda, sob olhares de búfalos parados em frente ao curral, Iuri voltou a demonstrar mais iniciativa, dessa vez contra Luisinho (pentacampeão regional de luta marajoara), que se safou da derrota imediata graças a uma impressionante soma de agilidade e flexibilidade. "O Iuri deixou claro que está com uma condição melhor de luta. O estilo dele é pressão o tempo todo. Ataca, ataca, ataca sem dar descanso ao adversário", concluiu Gavinho, após os confrontos de cinco minutos cada, dando a vitória do triangular para Iuri.

Craque no vale-tudo
O nível de preparo de Iuri fez com que ele arriscasse duelos em outros ringues longe da ilha. "A experiência de luta marajoara ajuda muito no vale-tudo", comenta. No vale-tudo, seu cartel é irrefutável: 16 lutas e 15 vitórias – sendo que a única derrota aconteceu ao quebrar a perna atacando o adversário, que perdia por pontos. "Não sei se é por causa do leite e da carne de búfalo, ou do peixe fresco, mas a garotada de Marajó cresce muito forte. Difícil de derrubar. Os meninos são bons de queda, sabem se livrar logo, não ficam apanhando à toa", analisa Gavinho.

A história de vida de Iuri é o típico caso que explica o que vem ocorrendo em Marajó: seu pai foi vaqueiro da fazenda Tapera, que já brilhou como a mais importante da ilha, mas hoje está decadente; até os 15 anos ele ficou no campo, aprendeu a lida do gado e conheceu a luta marajoara na hora do banho, quando o pai e o tio passaram a lhe ensinar as primeiras noções. Depois dos 15 anos, foi para a cidade estudar, viveu em Soure, mas acabou indo para a cidade grande – atualmente reside em Belém e luta (literalmente) para pagar o aluguel. "Tenho um filho de 8 anos [Iam] e uma filha de 3 [Taize] nascidos em Soure, mas, como o emprego aqui está cada vez mais difícil, eles vão estudar em Belém", conta Iuri, ciente de que os filhos estão se distanciando ainda mais das raízes da família.

Dia desses, no sentido contrário ao rumo imposto pelo "mundo moderno", Iuri acompanhou a mãe a uma visita à Tapera. Foi deprimente. "A igreja está abandonada, tem pouca gente morando, vaqueiro usa celular na cintura e brinco na orelha", lamenta Iuri. "Mudou tudo. A vida no campo está ameaçada a acabar de vez. É muita influência da cidade. Parece que para ser ‘alguém na vida’ tem que ser longe da fazenda." A frase de Iuri soa como uma crítica ao próprio destino. E talvez por isso a luta marajoara seja tão vital para ele, Luisinho, Toninho e companhia. É ali, fungando no cangote do oponente, sobre a terra amassada por manadas de búfalos, que eles têm certeza de quem são e do poder que carregam no sangue.

Atletas de peso
Não é só de luta que vive a cena esportiva de Marajó. Existem várias modalidades envolvendo o búfalo, ícone da ilha. O principal evento que reúne esses esportes é a Feira do Agronegócio de Soure, que acontece entre agosto e setembro (os Jogos de Identidade Cultural já não acontecem há alguns anos).

As provas são as seguintes: corrida de velocidade (350 m) e de resistência (de 2 a 10 km); adestramento (corrida em ziguezague em postes alinhados – ao final, tem que amarrar o bicho numa carroça e correr mais uns 80 m); prova de força (puxar o búfalo, que tem uma tora amarrada ao pescoço, por cerca de 20 m); travessia (cruzar o rio Paracauari no lombo de um búfalo, que são ótimos nadadores, no percurso da balsa entre Salvaterra e Soure). O búfalo Gatuso, de 8 anos de idade, era bicampeão de velocidade da feira, mas perdeu o título ano passado para o São Pedro, de 4 anos, a nova sensação da ilha.

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