por Carlos Nader
Trip #117

Uma boa medida antipoluição pode ser simplesmente parar de comer

Eu às vezes passo uma semana inteira comendo só arroz integral e bebendo água. Não é pendor para o autoflagelo. O jejum de desintoxicação é para mim uma experiência liberadora, sempre, desde a primeira vez em que passei por ela, há uns cinco anos, a mando de um médico antroposófico daqui de São Paulo, o Li de Carvalho.

Não foi fácil. Lembro que ao final do segundo dia de abstinência já estava quase de joelhos, salivando em frente a uma vitrine de padaria. Feito uma criança abandonada. Hoje agradeço muito, senão a Deus, pelo menos a Rudolph Steiner, o santo padroeiro da antroposofia.

Além da faxina no organismo, o jejum desencarnou a minha fome de um corpo etéreo de idéia abstrata. E por alguns dias transformou-a numa vivência da minha carne, deixando cravado nela o legado de qualquer experiência profunda. Mais compreensão. É simples. Depois de passar fome, entendo um pouco mais a criança abandonada.

São pequenas revelações valiosas. E a partir do terceiro dia as coisas vão ficando ainda mais intensas. Como diria algum mano paulista, você vai entrando num processo lento de barato louco. "Lento", porque você chega à conclusão de que, embora nenhum Einstein, nenhuma Mãe Dinah tenham previsto, a fome expande a percepção do tempo. E "louco" porque o barato de abstinência tem algo muito diverso do barato de ingestão. É um barato de lucidez. Você fica, digamos, loucamente lúcido.

Deixam de circular no organismo todos os agrotóxicos, todos os hormônios artificiais, todos os acidulantes, todos os conservantes, todos os peidulantes que a gente finge não ingerir quando faz uma refeição comum. E fica claro que a poluição não é apenas um fenômeno do mundo exterior.

Jejum de informação

Para mim e para vocês, amigos, leitores, internautas, a fome é algo virtual. Uma vontade. Uma experiência homeopática. Um programa de governo. Algo distante. O fato próximo é que a obesidade física ou mental já é hoje um problema de saúde pública bem mais sério.

Nosso espaço-tempo se define muito mais pelo excesso do que pela falta. Nesse contexto, não posso deixar de recomendar um jejunzinho de vez em quando, não só de comida, mas de qualquer outro poluente contemporâneo. Informação eletrônica, luz elétrica, carro, gente, fumaça. Em excesso.

Não estou propondo o recuo a alguma caverna, indígena ou platônica. Nenhuma recusa natureba das coisas do mundo. Ao contrário. Adoro informação, adoro luz, carro, gente. Fumaça, não gosto nem de incenso, mas o que é importa é que o jejum não é uma negação das coisas do mundo. Ao contrário, é um ritual temporário de reflexão e valoração dessas coisas. É a procura de uma referência, de um farol sensato para esta época em que a enxurrada industrial desaba, feito um brainstorm inconsequente, sobre as cabeças da sociedade de consumo.

Mas mesmo neste momento histórico em que a rapina direitista assola o topo do mundo, percebo aqui, nas minhas mãos, à medida que escrevo para defender alguma ecologia, um titubeio. Acho que alguma patrulha antiflorestal conseguiu se esgueirar para dentro de mim. Então deixa eu explicar. É óbvio que recuso qualquer forma de integrismo verde ou niilismo puritano. Recuso. Mas recuso também aquele ideário cínico, crente que é moderno, que vê na ecologia uma postura chata, cafona.

Esse é que é um pendor profundo para o autoflagelo. Não tenho vocação nenhuma para a auto-destruição. Prefiro ir fundo na cafonice. Moro em São Paulo. Vou fingir que não está acontecendo nada? Que o clima não está perigosamente quente? Que o ar não está perigosamente irrespirável? Que a TV aberta não está perigosamente massacrante? Que as pessoas não estão perigosamente ansiosas?

A poluição é um componente central do ciclo violento que vivemos. Só que especialmente perverso. Porque gera outras violências. Porque é praticada por nós mesmos, contra nós mesmos. E porque ao mesmo tempo em que envenena, também anestesia. Entorpece a lucidez. Impede a reação. Então faço um pedido público às autoridades. Pelo menos às de São Paulo. Se algumas cidades do interior precisam do Fome Zero, algumas capitais clamam por jejum. Para começar.

fechar