Ex-fumante político

por Alê Youssef
Trip #207

Não dá pra seguir beneficiando uma indústria que faz lobby por algo que mata as pessoas

 

Eu sou a favor da lei antifumo. Antes não era. Minha justificativa era igual à de todo mundo que era contra: que a liberdade das pessoas estava acima de tudo, que eram as pessoas que deveriam decidir. Mas aí eu parei de fumar e minha vida melhorou demais. E o que mais me ajudou foi o fato de que não se podia mais fumar dentro do Studio SP, assim como em qualquer outra casa noturna. Era um ritual: a banda começava o show e eu acendia um cigarro. Depois pegava uma cerveja e acendia outro. Mais uma cerveja e já estava no terceiro. Ouvia as reclamações dos não fumantes e fingia que entendia. Os artistas também reclamavam muito. Lembro especialmente da Céu, que desde o começo da sua carreira – que aconteceu no Studio – falava da fumaça, que atrapalhava sua voz. Falamos muitas vezes sobre o assunto e eu usava as justificativas de sempre. Ela até parou de frequentar a casa no auge da fumaceira. Mas a verdade é que eu não ligava para o cheiro horroroso da minha roupa quando chegava em casa e para a irritação no olho que sentia toda noite. E não ligava porque eu fumava.

Mas parar de fumar não é apenas um ato de bem-estar. É uma decisão política. Um dos maiores e mais famigerados lobbys que existem no mundo é o da indústria do tabaco. No Brasil não é diferente. A pesquisadora brasileira Stella Aguinaga Bialous, da Tobacco Policy International, Sabrina Presman e Analice Gigliotti, da Santa Casa da Misericórdia, do Rio de Janeiro, e os pesquisadores americanos Monique Muggli e Richard Hurt, da Mayo Clinic, publicaram recentemente em revistas científicas internacionais um estudo que documenta a reação da indústria do tabaco e de seus aliados na regulamentação do fumo em locais públicos no Brasil.

A pesquisa mostra que em todas as discussões legislativas sobre o tema a indústria do tabaco sempre operou para incluir uma vírgula a mais ou um duplo sentido no texto legal que a beneficiaria. Na primeira lei antifumo de 1986, por exemplo, os fabricantes de cigarros se organizaram para assegurar uma interpretação favorável à indústria. A lei foi usada para persuadir a opinião pública de que a questão do fumo passivo não estaria relacionada a malefícios à saúde, mas sim a questões de bom-senso, respeito à liberdade de escolha. Foi documentada farta correspondência entre a Phillip Moris e o deputado Elias Murad, relator do projeto na época.

Os pesquisadores contam também a história do programa Convivência em Harmonia, desenvolvido mundialmente pelas companhias de cigarro em parceria com os afiliados da Associação Internacional de Hotéis e Restaurantes (International Hotel and Restaurant Association IR&RA), que prega a divisão de espaço entre fumantes e não fumantes, a fim de impedir a criação de ambientes 100% livres do fumo. No Brasil, houve uma associação entre Souza Cruz e Philip Morris para esse programa.

Morte como negócio

Muitos anos e muitos enfisemas se passaram com as vírgulas e os duplos sentidos que conseguiram fazer áreas compartilhadas, depois áreas separadas por simples sinalização, para chegar aos fumódromos verdadeiramente separados – que acredito ser melhor alternativa para quem deseja fumar.

Assim como é para todo mundo que fuma, não foi fácil parar. Foi um longo processo de várias tentativas fracassadas. Mas como a vida melhora muito – não só nos pulmões, mas na consciência – o esforço vale a pena. Não dá para seguir beneficiando uma indústria que faz lobby por algo que mata as pessoas.

*ALÊ YOUSSEF, 36, é fundador e sócio do Studio SP e do Studio RJ e um dos fundadores do site Overmundo. Foi coordenador de Juventude da prefeitura de SP (2001-04). Seu e-mail é ayoussef@trip.com.br. Seu Twitter é @aleyoussef

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