Eu em FM, eles em AM

A baixa autoestima do brasileiro, que aceita não ouvir e ainda fazer cara de quem entendeu

Caro Paulo,

Ontem briguei com metade da plateia de uma palestra que eu estava fazendo no Rio de Janeiro. Não era uma plateia grande, 200 gerentes de loja de um cliente nosso, e por isso eu estava muito incomodado com as duas últimas fi leiras, que não prestavam atenção no que eu falava. Fui até lá, procurei interagir com as pessoas e tive a sensação de que tinha conquistado o interesse delas. Dali a dois minutos, de novo, parecia que eu estava em FM e eles em AM. 

Isso não é normal! Eu sou bom nisso. Era um assunto do maior interesse deles, os slides que eu tinha preparado com carinho estavam didáticos, simples e divertidos. A diretoria estava presente. Não tinha razão para aquela desatenção. Voltei ao fundo e usei um slide para despertar o interesse deles. Perguntei para o mais próximo de mim: “Você está vendo o desenho daquela linha ali embaixo no slide? Ela começa reta e vai ondulando. O que significa isso para você?”. Ele fi cou de pé para ver o slide e ia me responder quando eu, surpreso e indignado, o interrompi: “Espera aí. Você não vê o slide sentado?!!”. “Não!”, ele respondeu num tom como se a resposta fosse óbvia. “Deixa eu ver o que você está vendo”, respondi, indo sentar no lugar dele. Percebi então que ele só via a metade de cima do slide. Aliás, metade da plateia não conseguia ver o slide... e não reclamava!! Uns faziam cara de conteúdo como se estivessem vendo e outros, os mais do fundo, protegidos pela distância, relaxavam geral e fi cavam no celular ou na conversa com o vizinho. Tempo e dinheiro jogados fora! Meu, deles e da empresa! 

Fiquei muito bravo. Fiz um discurso inflamado sobre a baixa autoestima do brasileiro, que aceita não ouvir, não enxergar e ainda ter que fazer cara de quem entendeu. Um jogo de cena de merda que se perpetua e não deixa ninguém evoluir! Não era falta de consideração de quem organizou o espaço. Foi um erro da disposição das cadeiras em relação à tela. Se a vítima do erro não reclama, como corrigir? Ninguém aprende, nem a plateia, nem o organizador, nem o palestrante. Ainda bem que eu percebi sem eles falarem. Parei a palestra, mudamos as cadeiras, a tela, as pessoas e depois continuamos. E fomos felizes para sempre.

Conto essa história porque a evolução depende da interação verdadeira. Não ver e não ouvir têm origens muito complexas e talvez a mais difícil de enfrentar seja o medo de se comprometer depois de ouvir a real. Daí o faz de conta da surdez conveniente.

VOLUME MORTO

Você sabe que eu vivo do que falo: comunico conceitos e visões que inspiram a criação de processos, estruturas, produtos, serviços, experiências. Mas o valor do meu trabalho depende de que me ouçam e de como me ouvem. Não adianta só falar. Preciso ser ouvido para ser efetivo, consequente e ter valor que justifi que nossa contratação. 

Por isso acabei desenvolvendo uma boa sensibilidade para detectar o faz de conta do ouvir. Principalmente no mundo corporativo, onde o cinismo impera e os executivos são extremamente hábeis para demonstrar um interesse e uma motivação que eles não têm de verdade. A solução é fazer como se faz com criança que não quer tomar remédio para curar a doença. Enfia goela abaixo, com amor. Muda na marra, sem sacanagem, como fiz com o pessoal do fundão da palestra. Muda o design e cria uma nova experiência, que é boa de verdade. Aí gostam de verdade porque veem que aquilo é melhor de verdade.

Às vezes eu acho que a idade está consumindo o meu volume morto* de tolerância e delicadeza com a difi culdade dos outros, mas acho que não. Estou é ficando mais esperto e eficiente. Tenho certeza de que a galera da palestra curtiu a experiência e saiu de lá sabendo mais e gostando mais de si e... de mim!

Ricardo

*Para quem não sabe: “volume morto” é a reserva técnica do reservatório de água do sistema Cantareira, que abastece São Paulo. Eu me pergunto: a quem não ouvimos para deixar o reservatório chegar a esse nível tão baixo e perigoso?

*Ricardo Guimarães, 66, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é @ricardo_thymus 

fechar