Etiópia, McDonalds e Ronaldinho

por Henrique Goldman
Trip #220

Chegamos às últimas fronteiras do planeta, no ponto final do consumismo

É insuportável ver o mundo ficar cada vez mais homogêneo. Chegamos às últimas fronteiras do planeta, no ponto final do consumismo. Depois de Adis-Abeba, o que mais restará para ser estragado por tantas garrafas de plástico?

Ainda no avião, chegando em Adis-Abeba, percebo muito surpreso que estou sobrevoando uma cidade completamente diferente da que conheci quando fui para lá pela primeira vez, em setembro de 2001. Há 12 anos, o local era tão isolado do resto do mundo que a chocante notícia do ataque às Torres Gêmeas em Nova York nem mereceu ser manchete do principal noticiário local – o 11 de Setembro era só mais um reles fato ocorrido no remoto e irrelevante mundo exterior.

Hoje Adis-Abeba, capital da Etiópia, é uma metrópole africana rasgada por longas avenidas e anéis viários, carros, carros e mais carros, vans, ônibus e caminhões, centros comerciais horríveis e medonhos outdoors de marcas famosas por toda parte. Dizem que até o McDonald’s e o Starbucks querem abrir uma franquia por aqui. Com dinheiro emprestado por bancos chineses, este país milenar e extraordinário – o único na África que nunca foi colonizado pelos impérios europeus** – agora recebe de coxas abertas o sólito modelo babaca de desenvolvimento que já estragou o Brasil e o resto do mundo.

Mas, andando pelas ruas, a hecatombe é facilmente esquecida no delicioso calor das pessoas que me recebem, como se eu fosse uma espécie benigna de extraterrestre. A África faz eu me sentir muito alemão e, para não ser confundido com os turistas europeus, aviso logo de cara que sou brasileiro. A resposta é invariavelmente afetuosa: os nomes de Ronaldo ou Ronaldinho são pronunciados com um delicioso sotaque e acompanhado por um sorriso.

Na Etiópia raramente se agradece um favor ou um presente dado por um amigo e não se costuma aplaudir um artista no final do espetáculo. Não é ingratidão ou má educação. É simplesmente um jeito diferente de olhar para o mundo. Os favores, os presentes e o lindo espetáculo fazem parte do mundo e nele circulam. Os indivíduos são meros agentes, trâmites de divinas benesses.

NÃO FUI EU

Em Gonder, uma cidade do norte, descubro um traço maravilhoso da cultura local. Os habitantes da cidade são famosos por nunca assumirem responsabilidade por seus atos. Se um cidadão de Gonder for à sua casa e, sem querer, quebrar o controle remoto de seu home theater, ele muito provavelmente fará de conta que não foi ele quem quebrou. Mesmo sabendo que você sabe que ele é o culpado, ele jamais assumirá a culpa. E um protesto da sua parte será interpretado como sinal de enorme arrogância e falta de respeito. O lindo é que, se você for na casa desse mesmo cara e quebrar o controle remoto dele, ele olhará para você como se nada tivesse acontecido e dirá calmamente: “Já estava quebrado, eu ia mesmo jogar fora”. Ao contrário do Ocidente, em Gonder pode-se até passar fome, mas não se vive carregando nos ombros o fardo pesado de culpas e responsabilidades. Essa mentalidade está sumindo, assim como sumiram os rebanhos de bodes que há 12 anos atrapalhavam o trânsito no centro de Adis-Abeba.

É quase insuportável ver o mundo ficar cada vez mais homogêneo e perder idiossincrasias maravilhosas. A expansão de qualquer império ou religião é sempre uma força padronizante, e não é a primeira ou única vez que isso acontece na história da humanidade. O problema é que hoje temos a noção clara de que chegamos às últimas fronteiras do planeta, no ponto final do ônibus do consumismo e do abuso ambiental. Depois da Etiópia o que mais restará para ser estragado por tantas garrafas de plástico?

** Os italianos invadiram e ocuparam a Etiópia por quase cinco anos (1936-1941). Mas, ao contrário da vizinha Eritreia, não conseguiram colonizar ou mesmo controlar o país. Foram expulsos e humilhados pelos etíopes, que até hoje se orgulham muito por nunca terem sido colonizados.

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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