Um espectro ronda a cozinha de baixo custo
Diz-se gourmet , termo emprestado do francês, a culinária ou gastronomia que faz uso de ingredientes refinados, receitas especiais e apresentações sofisticadas. Tudo voltado aos mais selecionados paladares - e bolsos.
O gourmet existe por causa de sua antimatéria: o cachorro-quente de rua, o salgadinho oleosamente pingante, a carne de origem questionável, a salada com folhas esquisitas, o doce concentrado em açúcar, o macarrão instantâneo.
Qual paradoxo, então, em transformar esses saborosos dissabores nutricionais em pratos com ornamentos estapafúrdios, adornamentos requintados e preços pomposos?! Na galeria listamos alguns dos alimentos que nesse ano sofreram, assim como esse texto, com a febre gourmet.
Hambúrguer - O sanduíche com recheio de carne moída é popular e versátil. Por conta disso é compreensível que haja muitas receitas do lanches com ingredientes, formas e preparos diversos. O que fica difícil de entender é como algumas dessas invenções foram parar tão longe das lanchonetes. O The Burger Lab Star, hambúrguer do restaurante paulistano Burger Lab Experience, custa R$ 225. Na receita vão foie gras, queijo suíço, sal azul da Pérsia e outros ingredientes que poucas pessoas já degustaram sozinhos - que dirá juntos.
Crédito: Divulgação
Água - O elemento vital ao homem. A substância da existência. O líquido incoloro, insosso e inodoro. A bebida única na sua categoria e incomparável nas suas características. São tantos adjetivos que podem ser resumidos em uma única palavra: gourmet. A natureza já deu conta de conferir esse status a água há milhares de anos e não há nada nem ninguém que faça melhor. À exceção do mexicano Bosco Quinzaños. Ele criou o que chama de água gourmet: as moléculas mais puras de H2O. Gourmetização atômica.
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Bolovo - Há uma lenda urbana -- ou história inventada por um grupo de humor televisivo -- que remonta a criação do bolovo a um acidente entre caminhões de carga. O capricho da estrada juntou, numa única curva do tempo, quilos de carne moída, ovo cozido e massa para salgados. Um banho-maria em olho fervendo num punhado dessa mistura e estava criado o alimento base da pirâmide nutricional do boteco. Ele estava muito bem lá, obrigado, mas resolveram colocá-lo na elite das comidas com a Bolove. Nas misturas da marca tem espaço até para cogumelos, pimenta chinesa e pesto de hortelã. Não espantaria se fizessem uma versão gourmet para seu parceiro de mesa, o bombeirinho. “Petit pompier”.
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Croasonho - Embora tenha nome com aura gourmet, o croissant é um simples pão de massa folhada. Na França, país em que é mais popular, ele é vendido a preço de pão francês -- coisa que não tem por lá, diga-se. No Brasil, o croissant ganhou versões doces e salgadas e, como não podia deixar de ser, gourmetizou em forma de sonho. Sem trocadilhos: o croasonho é uma marca registrada para a união gastronômica de croissant e sonho de padaria. As misturas são tantas que dá até para encontrar uma opção menos refinada, como carne de panela. E, a bem da verdade, a sofisticação data de 1997, ano em que o lanche foi inventado, mas só agora o ápice foi atingido: a franquia abriu uma loja em Pinheiros, bairro paulistano onde a febre gourmet vem a cavalo.
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Feijoada - Às favas os refinamentos, os purismos e as sofisticações. À feijoada a gulodice, a fartura e a fome. Perceba: um misturado de feijão e carnes anônimas acompanhado de arroz, farofa e couve - para dar uma balanceada - é incompatível com a ideia gourmet. Mas o Brasil, terra onde a feijoada se popularizou, tem cá seus jeitinhos. Em Porto Alegre fizeram o impensável e gourmetizaram o bendito prato. Os ingredientes vêm separados em pequenos recipientes e só espaço para as carnes nobres da receita. Pelo menos preservaram o sábado como dia fiel para servir a feijuca.
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Marmita - O hábito de levar para o trabalho a comida feita em casa. Acima de dietas específicas ou pouco tempo de refeição, quem faz uso da marmita tem uma grande preocupação: não gastar dinheiro. E dinheiro, se poupado, não combina com gourmet. Ainda assim, insistiram no paradoxo. A marmita gourmet é um convite claro à ostentação. Por isso, até mudou o nome para Lunch Box. A Bento Store, em São Paulo, tem modelos que chegam a R$ 170, além de outros itens e acessórios. Como trata-se de algo gourmet, a comida não acompanha.
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Pipó - Tristes dos esfaimados navegadores portugueses e espanhois que por aqui chegaram e caíram de boca na pipoca. Não devem ter se demorado para descobrir, como sabemos desde criança, que o alimento de origem indígena poderia muito bem significar “finge-que-enche-barriga”. Ora, pois: quase 500 anos depois desse encontro há quem tente disfarçar o já disfarçado salgado - ou seria snack? Sua versão chic atende por Pipó e, além da embalagem que faz pensar “a Apple fez um tratamento estético no bom e velho saquinho de papel?”, ela vem em sabores rebuscados na arte de confundir o paladar, como Trufa Branca e Caramelo & Flor de Sal.
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Quindim - Quindim é nome de doce, mas também é nome de bicho. O rinoceronte do Sítio do Pica-Pau Amarelo se chama Quindim. Grande, gordo e glutão. Nem um pouco gourmet, ao contrário da gostosura feita na Bendito Quindim. A loja aboliu a receita tradicional para dar lugar a ingredientes como abacaxi, pistache e framboesa. Que os fãs protejam o mascote Quindim desse banho gourmet.
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Rabanada - Então é natal. O que você fez? Pegou vários pães amanhecidos, fatiou em mais pedaços ainda, fritou tudo com leite condensado e tascou canela e açúcar no final. Apesar de alguns detalhes, a receita da rabanada é fácil assim. Por isso mesmo ela foi engolida pelo elitismo culinário sucumbindo, enfim, à tentação gourmet. No Pólo Rio Carioca, na capital fluminense, o doce de inspirações cristãs foi profanado em versões com banana split, mel de engenho e molho zabaione. Mas afinal, o que é molho zabaione?
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Brigadeiro - A originalidade, o sabor e a facilidade da preparação fizeram do brigadeiro uma presa fácil aos abutres do gourmet. Uma volta em grandes cidades ou uma simples pesquisa na internet mostram como o brigadeiro ganhou receitas e até apresentações refinadas. Há mesmo brigadeiro de panela gourmet. E tem gente por aí comendo leite condensado com chocolate em pó.
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