O mestre de obras: Paulo Mendes da Rocha

Paulo Lima
Rafic Farah
Fernando Luna

por Paulo Lima
Rafic Farah
Fernando Luna
Trip #94

O arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, inspirador da Trip, é radical como sua obra. Prefere levar um tiro a andar de carro blindado, tem horror a dinheiro e acha estupidez uma piscina privada

Há muitos anos Paulo Mendes da Rocha vê seu nome associado à frase "um dos mais importantes arquitetos e urbanistas do Brasil". Uma definição especialmente honrosa, quando se considera que o país é o mesmo de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. O elogio, porém, provoca nele mais desconforto que agrado – e não se trata de modéstia. "Inventar heróis é a pior coisa que se pode fazer", esquiva-se esse capixaba de 73 anos.

Desde que se mudou para São Paulo, há cinco décadas, Mendes da Rocha dedica-se a elaborar um discurso – ora verbal, ora concretizado em edifícios e casas. De todo modo, é sempre o mesmo conceito que defende, radicalmente: a inteligência e a liberdade do homem.

Sua eloquência, que fazia lotar as aulas que proferia na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, continua cortante. Nesta entrevista à TRIP, entre doses de whishy e de nicotina, traçou um fraseado certeiro. "Prefiro levar um tiro a andar em carro blindado", "Tenho horror a dinheiro" ou ainda "O ideal do homem inteligente é não possuir nada", para ficar com três e­xemplos.

No que diz res­peito à razão primeira de seu ofício, a verve não é menor. Trata-se de um arquiteto capaz de inventar formas e espaços com o mesmo engenho que os reinventa. As melhores amostras dessa dupla habilidade estão na capital paulista: o projeto do Museu Brasileiro da Escultura, onde uma gigantesca laje de concreto parece flutuar sobre um vão livre de 60 metros, e a reforma da Pinacoteca do Estado, em que passarelas metálicas e clarabóias de aço trazem o prédio do século XIX para os dias de hoje.

Coisas de, com o perdão do predicado, um dos mais importantes arquitetos e urbanistas do Brasil – e, como prêmios e concursos internacionais atestam, do mundo.

É especial­men­te difícil para um arquiteto e urbanista morar em São Paulo? A ideia de escolher o lugar para morar é maligna. Está submetida a essa especulação mercantilista de vender para você um lugar ideal para morar. Vão vender uma casa de campo, uma casa na praia, aí lotear a praia e poluir a baía. Nenhum homem pode escolher o lugar para morar: ele mora de acordo com seu trabalho. A grande virtude de um homem contemporâneo é que ele não precisa ser proprietário de casa nenhuma. Se me chamarem para Istambul, Recife, vou, compro uma camisa e alugo uma casa. O ideal do homem inteligente contemporâneo está se esboçando com clareza: é não possuir nada.

Você acha que o trabalho é determinante na vida de uma pessoa? Precisa ver como você entende trabalho. Digo trabalho como atividade. Estou trabalhando agora, por exemplo. Nós precisamos ver o trabalho como algo festivo. Essa visão de que há um momento de trabalho e um de descanso é cristã. Você descansa à medida que tem sucesso. Se escava uma madeira para fazer um barco e vê que ele flutua, não há férias melhores que esse momento. Não temos que procurar um tempo para não ter nada que fazer e ir ao sítio, é idiotice. O abandono da cidade, a idiotização da ideia do verde, promovida pela propaganda e financiada pela especulação imobiliária – para ela é mais fácil abrir mato virgem e construir esses monstrengos de habitação –, deve ser debatido veementemente.

Você prega que uma ação da arquitetura e do urbanismo em relação à cidade implica uma atitude política. Como você entende isso se a gente pensar no centro de São Paulo, tão abandonado? Houve um abandono das zonas centrais. É política de rejeição à dimensão democrática da cidade – a classe dominante indigna abandona a cidade e foge para algum lugar onde não haja esse plano democrático. Se um cidadão se põe na esquina da Ipiranga com a São Luís o dia inteiro parado, não acontece nada. Se você fizer isso em bairros privados, aparecem quatro jagunços armados. Essa síndrome do medo faz parte de uma visão maligna, fascista. Há uma exacerbação da propaganda que diz: vá morar num lugar paradisíaco [e isolado]. Por que a praia é tão encantadora? Porque está todo mundo lá.

Você vai muito à praia? Muito. Sou capaz de ficar dias e dias numa praia. Minha família ia para o Arpoador [no Rio de Janeiro]. Moramos em São Paulo desde 1934, nunca mais saímos daqui. Mas íamos passar férias em Vitória e no Rio, tomava o trem, sempre.

Como você acha que mudaria a vida na cidade de São Paulo se a sua ideia da piscina pública no centro da cidade fosse executada [veja o croqui na parte de baixo desta página]? Seria melhor do que uma praça que ninguém usa. A água e a dimensão pública são da natureza: é uma cachoeira, uma lagoa, uma praia, é o infinito, é o reflexo da lua que não pode estar numa piscina de plástico. Aqui há apartamentos que têm uma piscina em cada varanda. É a rota do desastre. Você tem que admitir que um camarada com a sua pobre família, num domingo, com o seu pobre calção colorido em torno da sua piscina particular, está fazendo papel de cretino.

Você gosta de ficar em casa? Não. Fico porque tenho que ficar, mas não gosto, me sinto inútil, incomodando as mulheres. Já morei no Copan, no Butantã, na Paulista, no edifício Eiffel. Agora moro na avenida Angélica [no bairro de Higienópolis], porque minha filha vai a pé para a escola. Moro em qualquer lugar.

E a televisão, você assiste? Às vezes. A tevê é tão horrível que todo mundo gosta de dizer que não vê. Você vê por curiosidade em relação ao horror da tevê. Mas não consigo ver um programa horrível demoradamente. Se estiver sozinho, tenho pudor e desligo porque não tenho coragem de assistir àquilo. Para mim, é pior imaginar um amigo me vendo assistir a isso. Eu desligo, não faço certas coisas. É uma forma de se viver sempre com os outros. Mesmo estando sozinho, nunca fico sozinho.

Você procura a convivência com os amigos? Procuro os amigos, sem dúvida. Vou a bar, sozinho, encontrar amigos, beber. Procuro não viver sozinho. 

Com quantos anos você se casou? Casei tarde, com 26 anos. Casei duas vezes. Fiquei casado 15 ou 20 anos, por aí, não gosto de pensar nessas coisas. Depois casei de novo, estou casado há 30 e poucos. Tenho seis filhos, mas não queria falar disso, são os outros, tenho que respeitá-los.

Você nunca viveu sozinho, solteiro? Não, nem quando era solteiro [risos]. Tive uma namorada, que acho até que trabalhava na minha casa, uma mulher maravilhosa. Ela tinha um amante e brincava comigo. Lá pelas tantas disse que estava grávida. Se você visse o que passei... Durou 15 dias. Foi o primeiro grande encanto da minha vida, aquele mulherão, uma espanhola grandona, que disse que estava grávida. Era mentira.

Nessa época a iniciação sexual era inevitavelmente com prostitutas... De jeito nenhum. Com 14 anos você tinha namorada. As meninas do Rio, meu Deus... Namoravam muito, uma coisa incrível. Não é bem uma iniciação sexual, parece que isso é uma vertigem. A única consciência que tínhamos era de que os mais velhos não podiam ficar sabendo. Tenho que admitir que também andei por aí, em dancings. Íamos para ouvir as bandas, ninguém era chegado propriamente nessa área... Havia uma orquestra chamada Napoleão Tavares e seus Soldados do Ritmo. De vez em quando dava uma dançadinha...

Além do Napoleão e seus Soldados, de que mais gosta? Dos sambas todos, Pixinguinha, Cartola. Gosto muito da Marina Lima. Ela me chamou uma vez para fazer o cenário para um show e com isso convivemos um pouco, ela foi muito gentil, gosto dela, do irmão dela, das coisas que escreve.

Atribui-se ao Oscar Niemeyer uma frase que diz que a arquitetura atrai as mulheres... [Risos] A arquitetura deve atrair muito as mulheres porque, nesse processo histórico de repressão, elas sempre tiveram que se submeter a certa casa. Há uma dimensão feminina na arquitetura, necessária, mesmo para os arquitetos homens.

Esta transformação que está ocorrendo de a mulher se igualar ao homem muda a planta da casa? Tenho grande esperança na mulher, que nos ampara nos primeiros momentos da nossa existência, comparecendo com seu discurso mais do que comparecia antes, rebelando-se contra a opressão, como, por exemplo, a no mundo islâmico.

Você já experimentou mudar o espaço doméstico como naquele banheiro sem porta... Geralmente se faz porta. Quando vai cagar, você prefere uma porta. Numa ocasião fiz uma casa com muitos quartos, cada filho tinha um quartinho só para si. Nesse quartinho individual cada um tinha um banheiro, e esses banheiros tinham uma rabiosca, uma espécie de labirinto que não exigia porta, simplesmente para você não fechar a porta para você mesmo – era só um desfrute espacial em que flui melhor o espaço da pessoa. A ideia de porta é agressiva. Se não for necessária, não se deve pôr.

Sem querer levar esta entrevista para o lado da escatologia, devia haver um problema com o cheiro, não? Você não pode ter uma visão de repúdio àquilo que te acontece todo dia. Todo plano erótico está ligado ao cheiro. É tolo você se impressionar com um perfume francês. Prefiro um cheiro de carnaval, o cangote de uma pessoa querida depois de dançar. Não é humano você pretender assepsia. Agora, há cheiros horríveis. Quando aparece o inverno, a burguesia abre os guarda-roupas e bota casacos de pele com pouco uso para exibir. Exala um cheiro de naftalina horrível, pior que qualquer traque.

Pedimos para os visitantes do site da Trip fazerem perguntas para você. Esta é do Leandro Leme: "Se fosse encarregado de recriar Brasília, o que mudaria?". Não mudaria nada... mudaria a política. Construir uma cidade no sertão, inventar a arquitetura que foi inventada... Se você imaginar Brasília na frente de Washington, que é a capital americana! Washington, uma cidade neoclássica, feita com padrões greco-romanos, um estafermo, símbolo de um poder impostor – porque não é um poder da invenção artística, que corre riscos. Só esse contraponto entre as capitais já vale a construção de Brasília. Ninguém consegue copiar o Niemeyer. Agora, tirar a condição de capital do Rio de Janeiro foi uma bobagem.

Vários leitores reclamam que sem muito dinheiro não é possível ter acesso à boa arquitetura. Arquiteto não é só esse que tem um pequeno ateliê e cobra caro do cliente. A ideia de cliente em arquitetura é idiota – o cliente da arquitetura é o gênero humano.

Dentro desse assunto, como você vê a elitização do acesso à universidade? Quem dorme mal e enfrenta miséria dificilmente estuda como quem foi educado numa biblioteca. Sou um privilegiado: meu pai era engenheiro, minha mãe professora. Não é justo que você seja fruto da sorte. A ideia de sociedade dos homens é construir uma sociedade igualitária em que você pode decidir o que quer ser. Somos muito felizes na América Latina porque temos Cuba. Quem dá o estatuto do nosso futuro é o povo cubano. Deveríamos considerar a possibilidade de transformar esse paradigma estúpido da miséria.

Um ex-aluno seu me disse que ninguém perdia suas aulas, mesmo quando aconteciam na sexta à noite. Como você consegue manter o interesse de uma audiência pelo menos 40 anos mais jovem? Converso, e ninguém resiste a uma conversa. Para esses meninos, a universidade abre horizontes além da miséria da casa de cada um. Ninguém tem um tempo enorme, a vida é curta, você só tem 30 anos para fazer tudo. Para mim, os jovens só têm surpresa e urgência. Os mais aflitos e enérgicos são os jovens. Por isso, no nosso século, os movimentos mais significativos foram feitos pela juventude.

De que maneira você viveu movimentos como o hippie? Vivi todos os movimentos, mas sempre aquém ou além. O movimento hippie não morreu, não há movimento que morra, nem os horríveis. É uma bobagem pensar que os movimentos horrorosos passaram. Nem os fundamentalismos religiosos – todos os perigos permanecem [Esta entrevista foi feita um dia antes dos ataques terroristas ao WTC, em Nova York].

Eu acreditava que ia acabar o dinheiro e que a gente ia jogar LSD na caixa d'água. Não é esse o movimento hippie. Escar­necer da classe dominante imbecil, de generais fardados, não tem nada a ver com pôr LSD na caixa d’água da cidade. Os jovens que defendiam a liberdade jamais defenderiam um envenenamento em massa.

Mas seria envenenamento ou benesse geral? Pode ser uma benesse geral. Mas todo mundo ficar eufórico junto é um perigo...

Você já teve experiências com drogas? Já, breves. Eu e alguns amigos tomamos LSD durante uns dois ou três dias. Depois não tomei mais. Era uma sessão ritual. Tive minhas emoções, experiências de ficar afastado das prebendas diárias por alguns dias. Já fumei maconha com amigos, me lembro da sensação de caráter mecânico-ótico, de ver as luzes à noite na cidade. Você fica sem muita memória do que aconteceu. Nada demais, você fica alegre. Durante a ação das drogas não se tem muito controle sobre si mesmo, tanto que a gente nem se lembra. Se souber dosar a quantidade que pode tirar uma excessiva angústia de preocupações inúteis e se concentrar naquilo, é possível que seja bom. É como quem fuma

[cigarro]. Eu fumo, por exemplo.

E, para pensar em arquitetura, as drogas podem ajudar? Nunca me interessou muito, porque sempre estive envolvido com coisas que exigem atenção. Pode ser interessante se você tiver um trabalho recluso, trancado meses escrevendo um livro. Não acredito que se possa ser mais ou menos criativo. Você não consegue fazer nada além daquilo que sabe efetivamente. Agora, o cotidiano pode te perturbar a tal ponto... [que você pode precisar]. Mas as pessoas fortes não se perturbam. Gosto de lembrar da saída do Graciliano Ramos da prisão. Um repórter perguntou: "Agora que você está livre, como vai ser sua vida?". Ele falou: "Sou um escritor. Para escrever, tanto faz estar em casa como na cadeia".

Você disse que fuma. Como cuida da sua saúde? Tenho a impressão de que vou ter uma vida absolutamente normal e na hora certa vai me aparecer qualquer desassossego. Não me submeteria a grandes tratamentos, a gente não tem que se opor à morte. Se exacerbar a questão de preservar a vida, se exclui de situações, não bebe, não vai ao bar. Pode-se dizer para uma criança que ela não deve fumar, mas se você fumar ninguém deve te impedir. Você não pode privar ninguém do seu prazer. É como a questão da droga: deve ser liberada completamente. Entregar essas questões ao livre-arbítrio das pessoas é a melhor maneira: confiar na humanidade e não confiar em organizações, polícia, o que for. Quem lucra com o tráfico pesado do ponto de vista do valor da droga são os bancos. Hoje, os movimentos de moeda mais fortes são o armamento e a droga – bilhões de dólares que passam por dia nos bancos, eles não vão abrir mão disso.

E do seu dinheiro, como você cuida? Não gosto de dinheiro, porque pode ser instrumento de corrupção. O dinheiro não devia ser uma preocupação. Tenho horror do dinheiro e não posso viver sem ele. Se você tivesse o dinheiro de que precisa, não devia se preocupar mais com grana. Sempre que o dinheiro aparece em abundância, deve ser evitado. É como a saúde: muita saúde faz mal, as pessoas que ficam correndo, comendo só vegetais, correm o risco de não morrer nunca, terão que ser abatidas a tiros [risos]. Não existe futuro nem passado, existe experiência e o momento atual.

A gente tem a sensação, fazendo a revista, de que o que importa é o processo, não só o momento em que ela fica pronta. Qual a sua sensação quando uma obra sua fica pronta? Você tem que trabalhar para ficar pronto, seja a revista, seja um gole que você beba. Mas tudo o que nós fazemos é discurso. Se você faz um edifício, a sua ideia não é que aquilo seja uma maravilha em si: o prédio pretende ser um elemento constitutivo da cidade. A arquitetura como fato isolado, prédio por prédio, pode ser um excelente instrumento de destruição da cidade. Em São Paulo, o Conjunto Nacional, na avenida Paulista, e o Copan, do Niemeyer, são dois exemplos. Pela inteligência do Niemeyer, onde havia quadra inteira, em vez de um conjunto de predinhos, ele fez esse magnífico edifício, que realiza a cidade de modo muito melhor. Somos muito passivos diante dos interesses mercantilistas. A arquitetura tem que ser oportuna. Como fazer isso com edifícios que pretendem ser belíssimos e, entretanto, são instrumentos de destruição da cidade, como esses nas marginais do Pinheiros e do Tietê, que parecem embalagens de bebidas de Natal?

Os prédios estão cercados por grades, as áreas de lazer foram transferidas para dentro de shopping centers... Se você é medroso e acha que não há para todos e precisa defender aquilo só para você, você é um fascista. Esses alojamentos carcerários se tornaram a sede das empresas e mesmo a casa individual do medroso... O medroso é a matéria-prima do fascismo.

Como você acha que serão as favelas daqui a 50 anos? Vão constituir a cidade real contemporânea. Serão, como já são, a expressão da consciência urbanística da população. A forma improvisa-se com o recurso que há. Tem a ver com a vontade, é o desejo que caracteriza a inteligência humana.

Às vezes, seu discurso parece marxista, às vezes, anarquista. Como você se define ideologicamente? Não, anarquista iria atrapalhar a mim mesmo, é impossível um andamento anárquico. Mas é possível como atitude política. Quanto a marxista, bem que gostaria de ter um vínculo forte, porque Marx foi um pensador interessante em relação à visão de transformação do mundo, com a ideia de trabalho que produza um sucesso que beneficie a todos.

Você, que falou de Cuba, tem esperança de que o resto da América Latina consiga se mobilizar com a mesma coragem? Tenho esperança, sim. É evidente que nós teremos outro homem no futuro. O problema é a dimensão humana que vamos dar para essas transformações. E a possibilidade de um pacto de caráter mundial não é a globalização pelo mercado. Talvez o objeto mais daninho nesse processo seja o automóvel: o mundo inteiro está tomado de automóveis, seus espaços lotados. Um automóvel pesa 700 quilos, consome petróleo que é matéria-prima pesante, massa da terra que se transforma num gás volátil, diminuindo o peso do planeta para transportar a própria lata de 700 quilos. É impossível que continuemos praticando um erro de modo tão sistemático por muito tempo. É o conhecimento que vai desmistificar tudo isso, e você vai poder dizer que uma Ferrari Testa Rossa é um monstro horrível, uma coisa ridícula.

É por isso que você mantém seu velho Chevette? [Risos.] Vendi meu Chevette! Não tenho mais carro, é mais fácil andar de táxi em São Paulo. Uma bobagem você se enfiar dentro de um automóvel e ainda ter que responder se você se distrair e bater num troço, e pagar seguro. Como posso comprar uma coisa da qual tenho que pagar seguro? Quer dizer que ela é insegura?

Por falar em seguro: você já foi assaltado? Não. Não preciso ser assaltado para ser vítima de violência. Quem são esses guardas que protegem as pessoas? Tenho medo é de quem fabrica revólveres. Prefiro levar um tiro que andar num carro blindado. A presunção de andar num carro desses é absurda. Tenho que blindar meu cérebro porque não quero ouvir certas coisas? Quando você entrar em casa, a casa é blindada, seu filho é blindado, sua mulher é blindada, que besteira é essa? É tudo cretino! Quanto custa um carro blindado?

Uns 40 mil reais a blindagem. São quatro casas populares, custa dez paus uma casa popular. A "blindagem" do shopping center é ainda mais insidiosa, porque o aparato estético impositivo impede a entrada de um pobre: tem ouro, fontes, tocam música, tudo é brilhante, de granito. Quer dizer, fatiar como picanha as pedreiras, o maciço granítico do Brasil, para fazer latrina no Japão, pode? Se bobear vão fatiar o Pão de Açúcar. Estou falando da montanha de pedra para vender fatias de granito para revestir sanitário público, vestíbulo de shopping center. É tão estúpido cortar uma árvore como fatiar a pedra azul de uma montanha de granito!

Quando você fala das corporações com grande força política, tem que lembrar também da mídia...Todo mundo tem medo da mídia, porque você pode dizer A e a mídia põe como B. Corremos esse risco até como um poeta corre o risco de não ser compreendido. Essa edição do conhecimento sempre existiu. Nunca foi tão poderosa como hoje, mas também nunca foi tão vulnerável, porque todo mundo sabe escarnecer da mídia. Não há razão para você não confiar no homem atual quanto à edição do futuro – sempre houve um homem atual que editou o futuro, há milhões e milhões de anos. Afinal de contas, por que diabo pintou-se as cavernas de Altamira e Lascaux? Você faz da virtude instrumento de destruição, como pode fazer da palavra, como pode fazer da imagem.

A TV Cultura tem achado uma maneira de conciliar propaganda com programação de uma maneira que não agrida demais. Como você vê isso como arquiteto e como cidadão, pensando na cidade sitiada pela publicidade? É estúpido induzir consumo. A ideia de propaganda remete ao dr. Goebbels [ministro da propaganda de Hitler]. Não faz sentido propaganda. Você não pode dizer "beba isso", "tome aquilo". É evidente que a propaganda serve ao mal. Por que Galileu enfrentou a fogueira da Inquisição, se podia ficar calado? Há uma peça de teatro do Brecht, Galileu Galilei, em que se conta que ele está preso pela Inquisição – seria queimado, mas dão uma chance: se abdicar daquilo tudo, vive. E está na angústia de decidir se faz ou não quando recebe a visita de um de seus discípulos. Enquanto estão conversando, ouve-se um alarido lá fora e ele pergunta: "O que está acontecendo?". E o jovem discípulo: "Você não sabe? É o carnaval e o tema desse carnaval é que nós é que giramos em torno do sol". E Galileu: "Quer dizer que isso está na boca do povo?". O menino diz: "Está". E ele: "Pode me dar que assino que é tudo besteira o que disse". Está consagrada essa passagem de que nós é que giramos em torno do sol. Essa é uma imagem que mostra como somos capazes de estabelecer uma reação quanto à rota do desastre.

Você falou em sol, e eu lembrei que o Farah foi a uma astróloga e ficou muito impressionado com a competência da adivinhação. Você acredita nisso? Não. Mas creio que uma pessoa sensível possa acreditar.

Depois vou levar o Paulo [o apontamento foi feito por Farah] na minha astróloga e ele vai ficar fascinado [risos]. Se você se reportar à mecânica celeste e à atração das massas, deve haver alguma atração sobre a sua pobre massa. Mas, se isso for verdade e se chega a influir no seu psiquismo, qualquer feijoada também pode causar uma tempestade na massa [risos].

Um jantar muito caro altera o psiquismo [risos].Você fica com mais massa. Ele era Saturno, mas comeu uma melancia e descambou para Júpiter [risos].

Esse raciocínio cético poderia ser aplicado à religião em geral? O Guimarães Rosa tem um diálogo muito inteligente: "Deus existe?". E o outro diz: "Não. Deus existe mesmo quando não há". Hoje em dia é um grande perigo essa formação de uma movimentação massiva de caráter ignorante e delirante em torno da religião. É como se você estivesse entre fundamentalistas e dissesse que Alá não existe. Vão te matar. Naquele momento, Alá existe como uma força que está naquela idiotice radical, de extração quase maníaca. Religião não serve para nada, devia ser ultrapassada.

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