Luiz Mendes relembra rebelião no Carandiru: ”Ultrapassamos mais um limite e estávamos felizes”

Limite é escola. É também a tensão da existência. A infinitude do nosso querer em conflito com a finitude de nossa vida contida.

O ano era 1987, prisão tomada; rebelião. Guardas sequestrados e reféns. A cadeia nas mãos dos que comandam as ações. Ao saber fui procurar aliados. Aturdidos, não sabíamos ao certo o que estava acontecendo. O conflito era lá no fundão da cadeia.

Havia mais de 50 funcionários sequestrados. Uma fuga em massa fora frustrada. Os responsáveis pela façanha haviam tomado a prisão. Ficamos quase que despreocupados. A maioria de nós não tinha nada a ver com aquilo. A questão estava focada e localizada, e acreditávamos na sensatez das autoridades. O massacre dos 111 na Casa de Detenção só aconteceria cinco anos depois. Negociariam e nos tirariam daquela roubada. Os autores iriam para o setor disciplinar sem espancamento e tudo voltaria à normalidade.

De repente, entraram os policiais disparando contra nós. Duda, ao meu lado, caiu no chão esparramando sangue. Outros foram caindo baleados. Corremos para o fundão.

O desespero corria comigo. Não conseguia parar e muito menos pensar. Eles nos caçavam como ratos. Corríamos desordenados para todos os lados, enlouquecidos pelo medo. Nada mais existia, tudo era correr. Estava surdo, mas senti quando Max me puxou. Segui atrás. Encontramos presos ensanguentados a gemer pelas galerias. Estávamos sendo derrubados a tiros como patos de parque de diversões.

Entramos na oficina do segundo pavilhão. Max era a salvação. Colei nele, seguindo-o em tudo. Havia outros escondidos. Vieram conosco, atrás do Max. Ficamos escondidos atrás de máquinas, à espera. Chegariam a qualquer momento. Esperamos a eternidade de 20 min. E, como já sabíamos, chegaram atirando.

Queriam que saíssemos. Mas, se obedecêssemos, seríamos assassinados. Era o inimigo com licença para matar. Não sabiam em quantos estávamos e temiam entrar. Nos calamos, fingindo que não havia ninguém. O pavor tomou conta. Éramos um grupo de cerca de 20 pessoas; alguns já baleados. O sangue escorria misturando-se à água já vermelha no chão. Não conseguíamos conversar, a voz não saia de tanto medo. Estávamos em nosso limite extremo.

Cara arrebentada
Max gritou que ia sair. Os encanamentos estavam estourados e a água inundava o chão. Uma voz respondeu para que viesse. O amigo não pestanejou; tirou toda a roupa e nu se jogou de barriga no chão alagado. Nós o vimos deslizar até o portão de ferro. Esperamos tiros de recepção. Não houve. Apenas gritos desesperados.

Não me pergunte por que, mas fui tirando a roupa e fiz questão de ser o próximo. Apanhar seria menos mal. Não consegui deslizar até o portão. Arrastei-me com o corpo retesado esperando o primeiro tiro. A água estava dando choque, queimando. No portão, fui violentamente puxado pelos cabelos. Paus e canos de ferro retiniam nas paredes e ressoavam secos quando me atingiam. Estava tão injetado de adrenalina que não senti nada e acho que desmaiei.

Max limpava o sangue da minha cara, quando acordei. Sorriu com a cara arrebentada. Parecia mais esganar de dor. Tentei sorrir de volta, embora doesse. No rosto a alegria das lágrimas salgadas a queimar a pele ferida: estávamos vivos! Quebrados, mas vivos! Havíamos ultrapassado mais um limite e estávamos felizes. Oficialmente 37 de nós não conseguiram, haviam sido mortos.

Foi vencendo limites com esse nível de risco que vivi por mais de 30 anos. Acho que somos demasiadamente grandes para nos bastar a nossos limites. Enriqueci a existência no processo das ultrapassagens. Ao ser liberto, deixei para trás o último desafio daquela fase. Hoje tudo o que quero é juntar ao mundo algo de meu e participar da aventura coletiva que é a humanidade. E ainda existem outros limites e outros e outros...

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e dez meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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