Nesta edição, arriscamos um olhar leve e desarmado para a busca de guias, mestres e gurus
Um sujeito com rabo de cavalo amarrando longos fios de cabelos grisalhos e lisos desce de um SUV de oito cilindros capaz de transportar confortavelmente sete passageiros. Ele está só e tem numa das mãos uma caneca térmica de alumínio com alguma bebida quente. Veste uma camisa de flanela xadrez, uma calça molenga e folgada com pernas de bocas largas, feita de tecido rústico aparentando aspereza, talvez cânhamo. Anéis em vários dedos. Um bigode vasto. Rosto magro e sulcado. Tatuagens pálidas nos antebraços, esmaecidas pelo tempo, pedindo retoque. Estamos em um certo tipo de loja. Existem dezenas delas espalhadas pela Califórnia. São estabelecimentos curiosos, que se definem como centros de conexão com o sagrado, o místico, o metafísico e o espiritual. Lugares que de alguma maneira resumem o que a cultura americana melhor fez com quase tudo até hoje. Banalizar e mercantilizar qualquer coisa e, ao mesmo tempo, tornar tudo mais palatável, acessível e fácil de consumir. Ciências, técnicas, filosofias, saberes e algumas maluquices são separadas por temas em prateleiras, como em uma locadora de filmes. Um menu completo, que vai sem constrangimento ou prurido de jardinagem a bruxaria, de cristianismo a hapkido, de fungos alucinógenos a feng shui e hipnotismo. Nosso amigo compra um spray que promete espantar as más vibrações, um livro com trabalhos acadêmicos sobre as mais recentes descobertas relativas aos efeitos das substâncias lisérgicas sobre o cérebro humano, um manual de cabala e um pôster com o rosto do guru Sai Baba sorrindo um sorriso que, de longe, carrega algo de Tim Maia em sua melhor fase. O caixa, um senhor aparentando mais de 70 anos, pergunta sem tirar os olhos das teclas da máquina registradora: “Encontrou tudo o que buscava?”. Para o nosso amigo, um possível veterano da Guerra do Vietnã, tudo estava lá.
Antes de sair, um olhar reverente na direção do que seria o “hall of fame” dos mestres e gurus. Uma parede sobre a qual repousam pequenos quadros de mesmo tamanho, sanduíches de vidro semelhantes, com imagens dos rostos de figuras como o próprio Sai Baba, Jesus Cristo, Yogananda, Gandhi, Osho, Dalai Lama e outros. É possível até adquirir ali espécies de “minipôsteres” com os rostos dos supostos 108 gurus e mestres de maior relevo para a humanidade. Uma verdadeira gurulândia, prêt-à-porter.
Todos os tipos
Esta edição da Trip arrisca um olhar leve e desarmado para a impressionante obsessão que parece mover multidões no mundo inteiro, cada vez mais vorazmente, numa correria desabalada em busca de guias, mestres e gurus. Indivíduos que possam, através de seus saberes, poderes, rituais e conexões, diminuir a dor de viver e resolver a bagunça espiritual, física e ambiental em que conseguimos nos meter. Nossa tentativa foi de deixar de lado quaisquer preconceitos para navegar soltos, com leveza e assertividade, pelos mais diversos flancos. Subimos os morros do Rio com um pastor evangélico capaz de pacificar guerras sangrentas entre traficantes de facções inimigas e de conquistar ao mesmo tempo o respeito das forças policiais e das lideranças do crime. Conversamos com um dos mais populares autores dos best-sellers carimbados como “autoajuda” nas prateleiras das livrarias, fomos à Índia descobrir como um profissional liberal de classe média deixou o bairro da Aclimação, em São Paulo, para se transformar num guru capaz de atrair grandes quantidades de discípulos ávidos por aplacar suas angústias, em pleno centro místico do planeta. Descemos para Santos para saber como vai a vida de um dos maiores mestres do esporte, do mar e do carisma brasileiros, resgatamos histórias infelizes e equivocadas de gurus que lidaram mal com suas próprias capacidades, examinamos o pensamento de um jovem líder político e de um importante representante da linha de frente do movimento de renovação da igreja católica, descobrimos como alguém pode encontrar seu guru dentro de uma privada na cela solitária de uma cadeia. Nem a casa de um discípulo de Lúcifer na capital carioca escapou do nosso scanner.
Figuras realmente dotadas de saberes diferenciados, recebidos de origens ou por razões inexplicáveis. Gente que mergulhou fundo e acabou acumulando conhecimentos incomuns que os fizeram capazes de guiar os outros por vias mais claras. Gente despreparada, alucinada, que por ignorância, arrogância ou até maldade pura é capaz de semear a confusão e a idolatria boçal, abusando do pavor que temos do desconhecido.
Há de tudo.
Qual a conclusão? Você terá que tirar a sua. Ou perguntar ao seu guru.
Mas não se engane. Respeitamos a fé. Mais do que isso, acreditamos na fé. Se não por outras razões, pelo inexorável fato de que, até para não acreditar em nada, é preciso ter fé absoluta nos próprios princípios. E desta vez, é bom dizer, não foi apenas o gosto pela diversidade que nos moveu.
É que acreditamos mesmo que, se olharmos bem, todos são mestres. Começando por você.
Paulo Anis Lima, editor
P.S.: Nesta edição #190, você conhece os 13 homenageados da quarta edição do Prêmio Trip Transformadores – pessoas alinhadas aos princípios da Trip que são autênticos mestres para muita gente e para nós também.