Como os veículos de comunicação têm colaborado para combater ou perpetuar o racismo
Foram necessários 107 anos desde a Abolição para o governo brasileiro reconhecer oficialmente a existência do racismo e da desigualdade racial no país. Foi só em 1995, com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que passamos a discutir políticas reparatórias para a população negra. O tema teve destaque em 2001, com a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Conexas, em Durban, África do Sul.
A questão racial ganhou páginas de jornais quando, no início do governo Lula, em 2003, foram estabelecidas as primeiras reservas de vagas para negros em instituições de ensino superior. Muitos articulistas ocuparam espaços de opinião para defender que “não precisamos de cotas em um país tão mesclado”; “aqui existe uma democracia racial”; “reconhecer a existência de raças provoca racismo às avessas”; “a presença de alunos cotistas prejudica o rendimento das aulas” – teses que perdem força diante das primeiras turmas de cotistas se formando: estatísticas mostram que esses estudantes têm tido desempenho acadêmico igual ao de não cotistas.
A maneira como os veículos de comunicação relatam assuntos ligados a essas questões faz toda a diferença no debate. Entre 2007 e 2010, a pesquisa Imprensa e Racismo, realizada pela ANDI – Comunicação e Direitos, em parceria com organizações ligadas ao Movimento Negro, analisou 54 periódicos de todas as regiões do país. Os dados apontam algumas tendências.
Uma delas: o noticiário é tecnicamente qualificado, mas permeado por um debate ideológico; nos jornais, textos sobre ações afirmativas resumem-se às cotas raciais, com 18% do total desse conteúdo. A maioria dessas informações (32%) são publicadas em espaços de opinião – em geral, contrária ao sistema de cotas. Os editoriais são os espaços opinativos que mais adotam essa posição.
Negligência
Outro dado: é um jornal regional que lidera, em termos quantitativos, o debate sobre racismo – A Tarde, de Salvador (BA), foi o impresso que mais publicou textos acerca da problemática analisada (13,1% do total). A cobertura é motivada por movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, de forte atuação na Bahia.
O estudo também demonstra que muitos temas importantes para o debate sobre racismo seguem invisíveis na imprensa. Saúde da população negra, relações entre raça/etnia e gênero, e ensino de história da África, por exemplo, apareceram em menos de 2% das notícias pesquisadas. Da mesma forma, é diminuta a abordagem da relação entre a permanência da população negra em posições socioeconômicas desfavoráveis quando comparada aos não negros.
Mas é no noticiário sobre violência que se verifica uma das negligências mais sérias da cobertura jornalística. Há uma total desvinculação entre a violência física praticada contra a população negra e o debate sobre seu contexto de produção – a violência simbólica do racismo. Quando a imprensa trata de violência física não questiona se houve racismo, mesmo que estatísticas mostrem que a maior vítima de homicídio no Brasil é o jovem negro. Das reportagens que tratam de violência física seguida de óbito, apenas 3,2% se referem ao tema racial.
Essa ausência poderia ser superada caso o noticiário mencionasse as características étnico-raciais das vítimas, se suas famílias fossem entrevistadas, se dados e estatísticas sobre homicídios de jovens negros compusessem a notícia e outras fontes, além da polícia, fossem consultadas. O avanço do compromisso por justiça racial é incontestável. A imprensa precisa acompanhar.
Vai lá http://www.andi.org.br/portal-andi/publicacao/imprensa-e-racismo
*Maria Carolina Trevisan é jornalista, coordenadora política do Projeto Imprensa e Racismo na ANDI, organização que dá apoio à cobertura jornalística de áreas relacionadas aos direitos humanos. Além de assinar o textos desta página e o da esquerda, colaborou com a pauta e a edição de parte dos textos desta Trip.