No coletivo de bilhões de Cains e Abéis, o perdão é sempre o maior desafio de todos
No coletivo de bilhões de cains e abéis, o perdão é sempre o maior de todos os desafios. Nada mais simples e ao mesmo tempo complicado
Janeiro, 1963
Douglas nasceu saudável, de parto normal. O problema foi Cesinha, o irmão mais velho, de 3 aninhos. Ao ver o recém-nascido em casa, deitou na cama e não conseguiu mais levantar. Queixava-se de fortes dores nas pernas e choramingava muito. O pediatra suspeitou de paralisia infantil. Mas, no quarto dia, a avó, desconfiada, comprou uma bola e chuteirinhas da marca Campana. Colocou-as nos pés de Cesinha e ele simplesmente esqueceu a encenação. Saiu correndo atrás de uma bola.
Janeiro, 1977
Laerte, o idolatrado amigo carioca de Cesinha, veio ao Guarujá passar as férias de verão. Laerte era bonito, sabia pegar onda e tocava “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin, inteirinha no violão. Era o protagonista de aventuras maravilhosas relatadas por Cesinha ao voltar da colônia de férias em Campos do Jordão. Douglas conhecia as histórias de cor e as contava para seus amigos numa versão adaptada, como se as tivesse vivido. Laerte era supergente fina, não era metido a besta e não tratava Douglas como um bundão. Com a atenção de Laerte, até Cesinha estava sendo legal e chegou a rir de algumas piadas sem graça do Douglas. Não ficou, como sempre, tentando dispensá-lo como um traste espinhento.
Douglas tocou no violão uma canção que estava compondo, uma balada rock progressista de protesto que – como definia – era uma mistura de Emerson, Lake and Palmer com Geraldo Vandré. Laerte elogiou a composição e até aprendeu a tocá-la. Naquela noite, Douglas nem conseguiu dormir de tão entusiasmado. Terminadas as férias no Guarujá, Douglas retomou a vida modorrenta de adolescente ginasiano na Pompeia. E Cesinha conheceu a Selma na boite Ta Matete, uma gostosa do Objetivo de Santo André. Ele se apaixonou e os dois começaram a namorar. Muitos meses se passaram e, em um sábado à noite, Douglas ficou em casa assistindo televisão e se masturbando. Cesinha voltou da rua chorando e contou que Selma tinha ido ao Rio e dado para o Laerte. Contou também que o carioca tinha apresentado a música composta por Douglas no Festival da Canção de Cabo Frio como se fosse de sua autoria. Com pena do irmão, Douglas nem se incomodou com o furto autoral.
Só quando foi dormir, Douglas se deu conta de algo muito grave: três meses haviam se passado desde a ida de Cesinha ao festival de Cabo Frio. Por que seu irmão demorou tanto para contar que Laerte roubara sua música? Como pôde continuar a amizade com o ladrão? Douglas sacou que Cesinha só se dignou a contar a história depois de se tornar vítima do carioca filho da puta. Ao ser confrontado, Cesinha simplesmente gritou: “Não fui eu que mandei tocar aquela bosta de música para aquele filho da puta”. Douglas disse que não estava culpando Cesinha pela desonestidade de Laerte. Estava ferido porque a coisa foi mantida em segredo e a amizade com o traidor continuara. Douglas ficou puto, mas engoliu seco.
Ontem à noite
Fui a uma reunião da minha turma do ginásio e reencontrei o Douglas, que não via há 33 anos. Ele me contou que tinha uma loja de cozinhas de luxo e era representante exclusivo no Brasil de renomadas marcas. Perguntei pelo irmão e ele engoliu seco. Há muitos anos Cesinha andava mal das pernas. Tinha enterrado toda a grana dos pais quando entrou de sócio em uma rede de fast-food que não decolou. A crise financeira foi a última gota d’água: falido e sem crédito, separado da mulher e dos filhos, Cesinha se jogou do nono andar de um prédio em Moema havia três meses.
E eu voltei pra casa pensando que, como irmãos, os dois já tinham nascido mortos. Neste coletivo feito de bilhões de Cains e Abéis, o perdão é sempre o maior de todos os desafios. Nada mais simples e ao mesmo tempo complicado. Douglas me disse que nem soube chorar no enterro.
*HENRIQUE GOLDMAN, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do fi lme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br