As luzes e as sombras de Fela Kuti
No documentário "Meu Amigo Fela", o diretor brasileiro Joel Zito Araújo apresenta o criador do afrobeat através dos olhos de seus amigos mais íntimos
Foi ao ler a biografia de Fela Kuti escrita por Carlos Moore e absorver as complexidades presentes na vida do criador do afrobeat que o diretor Joel Zito Araújo decidiu produzir o documentário "Meu Amigo Fela", em cartaz nos cinemas. "O que eu achei fantástico na possibilidade de fazer esse filme foi descobrir alguém com uma vida tão rica e tão contraditória", explica o mineiro, tido como um dos responsáveis pela implantação do chamado cinema negro no Brasil.
Nascido em Abeokuta, na Nigéria, em outubro de 1938, Fela Kuti é filho de uma ativista feminista e de um pastor protestante. Maestro, cantor multi-instrumentista, dançarino e também ativista, se tornou uma lenda em seu país ao usar a música como instrumento de libertação negra e luta a favor do pan-africanismo. "Fela foi um combatente contra a colonização, contra o racismo, contra a desigualdade social da Nigéria, contra a corrupção das elites africanas. E acaba enlouquecendo exatamente por conta desta postura combativa", diz Joel.
No documentário, acompanhamos a complexidade da vida do nigeriano através dos olhos e das conversas de seu amigo íntimo e biógrafo oficial, Carlos Moore. Entre as pessoas entrevistadas, está seu filho, Seun Kuti, duas de suas 27 mulheres e Sandra Izsadore, ativista americana que o influenciou politicamente. "Meu Amigo Fela" também traça um paralelo entre outras lideranças negras do século XX, como os americanos Malcolm X e Martin Luther King, o Partido dos Panteras Negras e aos heróis da independência africana. "Não é um filme resumido na história do Fela, é um filme que ajuda você a compreender o pan-afrcanismo e o que foi essa geração, o que ela sofreu, pelo que ela lutou", diz.
LEIA TAMBÉM: Conheça a ativista americana Sandra Izsadore, Pantera Negra que influenciou politicamente Fela Kuti
A produção já percorreu mais de 19 festivais no Brasil e no exterior e ganhou importantes prêmios, como o de Melhor Filme realizado na diáspora africana no Fespaco (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou), maior festival de cinema africano. No continente, ele já é considerado um dos 15 melhores filmes do ano e está indicado para disputar o Oscar Africano.
No papo com a Trip, o diretor fala da dificuldade de fazer um filme sobre um músico africano, da prisão que sofreu quando estava na Nigéria e a importância da história de Fela nos dias de hoje: "Eu percebi que fazer um filme sobre ele era mostrar para as gerações atuais o quanto que nós negros interferimos positivamente na história mundial do século XX."
Trip. Como o afrobeat e o Fela apareceram na sua vida?
Joel Zito Araújo. Eu conheci o afrobeat nos anos 80, momento em que o ritmo teve uma certa popularidade no Brasil. Já o Fela e sua história eu conheci por causa do Carlos Moore. Quando ele mudou para o Brasil, por volta de 2001, viu meus filmes e me procurou para conversar. Foi quando eu li a biografia escrita por ele que fiquei doido para fazer o documentário.
E como foi o desenvolvimento do doc.? Comecei a desenvolver esse projeto por volta de 2008, época em que escrevi e comecei a buscar dinheiro para realizar o filme. No entanto, conseguir essa grana tomou seis anos da minha vida. É muito difícil, especialmente quando se trata de um documentário sobre um africano, além de ser um filme com um tema internacional e de um cara que é pouco conhecido no Brasil.
Por que você acredita que ele é pouco conhecido aqui? Eu acho que o Fela ficou desconhecido principalmente por dois motivos. Primeiro porque ele se negou a reduzir suas músicas, suas composições ao padrão do rádio, que pede canções de 3, 4 minutos de duração. O fato de ele fazer músicas de 10, 15 minutos não foi aceito, as rádios não queriam passar. E, segundo, porque ele era um rebelde, um revolucionário. Acredito que isso dificultou a entrada dele no Brasil.
LEIA TAMBÉM: Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, conta sua ousada trajetória no cinema
O que na história mais te motivou a fazer o documentário? A primeira coisa foi a percepção de que ele é uma espécie de herói trágico. Ele foi um combatente contra a colonização, contra a mentalidade colonial da África, contra o racismo, contra a desigualdade social de seu país, contra a corrupção das elites africanas. E sofreu muito por isso, acabou enlouquecendo exatamente por conta desta postura combativa. O outro elemento foi quando eu percebi que ele era um grande pan-africanista. Ele era conectado a uma geração que foi fundamental na segunda metade do século XX. O que acontece com o Fela está relacionado ao movimento negro norte americano do período, ao Malcolm X, ao Martin Luther King, aos Panteras Negras e, principalmente, aos grandes heróis da independência africana. Eu percebi que fazer um filme sobre ele era mostrar para as gerações atuais o quanto que nós negros interferimos positivamente na história mundial do século XX.
Desde o início, a ideia era entrar na complexidade da vida dele? Eu gosto de fazer filmes que mergulham na complexidade do ser humano. O Fela é um gênio e uma pessoa profundamente humana, com todas as nossas contradições. Ninguém é só santo, ninguém é só demônio. E o que eu achei fantástico na possibilidade de fazer esse documentário foi alguém com uma vida tão rica e tão contraditória.
E como foi a experiência de viajar até a Nigéria? Fiquei 10 dias lá e não foi nada fácil. Não recebi do governo nenhuma facilidade, eles, inclusive, me proibiram de entrar com a minha equipe. Depois de uma longa negociação, finalmente me deixaram filmar, mas com uma equipe nigeriana. Uma parte das pessoas nem inglês direito falava. Eu adoro a África, já fui mais de 30 vezes, mas minha experiência em Lagos, especificamente, não foi muito feliz. Até preso eu fui.
Como foi isso? A prisão foi no meu dia de descanso. Enquanto estava fotografando uma igreja, passou um carro de polícia na estrada e ele acabou saindo no canto da foto. E eu não sabia que fotografar a polícia era proibido na Nigéria, eu nem tinha a intenção de fazer isso. Eles viram e me prenderam, me acusando de espião. Me impediram de entrar em contato com a embaixada e com o meu produtor nigeriano. Ficaram duas horas circulando de carro comigo até que eu percebi que era uma tentativa de me extorquir, um ato de corrupção. Isso aconteceu às 10 da manhã e eu saí da delegacia às 16h, depois de muita negociação.
Qual foi a história ou pessoa que mais te impactou no processo? A minha grande surpresa foi a Sandra Izsadore. Perceber o quanto ela é uma mulher forte, o quanto é natural que aquela mulher tenha virado a vida do Fela. A Sandra Izsadore foi a mais incrível das pessoas que eu conheci.
Qual tem sido o feedback do filme? As pessoas ficam especialmente impressionadas porque eu não faço um documentário chapa branca. É uma produção que mostra o lado de luzes e o lado de sombras do Fela. E, mesmo mostrando seu lado "ruim", que é o momento em que ele enlouquece, as pessoas saem da sala o admirando, porque essa não é uma forma de destruir a imagem dele.
Qual a importância do documentário relembrar a história de Kuti nos dias de hoje? O documentário é uma janela para você compreender essa geração de artistas e de líderes políticos negros que fizeram a segunda metade do século XX. Não é um filme resumido na história do Fela, é um filme que ajuda você a compreender o pan-africanismo e o que foi essa geração, o que ela sofreu, pelo que ela lutou. Por isso o filme se torna tão internacional. Ele abre várias realidades.
Créditos
Imagem principal: Divulgação