Ele não é o Spike Lee brasileiro

por Carol Ito

Comparado com o cineasta americano, Jeferson De acaba de finalizar M8 - Quando a morte socorre a vida, com Lázaro Ramos e Zezé Motta

O cineasta Jeferson De, diretor de filmes como Bróder (que venceu o prêmio de melhor filme no Festival de Gramado, de 2010), O amuleto (2015) e Correndo atrás (2018), dispensa o apelido de “Spike Lee brasileiro” justamente por conhecer a situação do negro no Brasil em suas nuances mais profundas. “Acho que as coisas são mais complexas do que isso”, defende ele, que se prepara para lançar, no primeiro semestre de 2019, a ficção M8 – Quando a morte socorre a vida, com um elenco de peso composto por veteranos como Lázaro Ramos, Aílton Graça e Zezé Motta, e jovens como Juan Paiva e Raphael Logam.

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Para além da trama, o novo trabalho de Jeferson se propõe a tratar de questões que, para o diretor, são fundamentais. “O filme gera debates, que é tudo o que precisamos hoje. As pessoas podem exibir muitas certezas, mas o filme mostra que sempre sobra algum espaço pra incerteza e esse é o ponto de reflexão.”

Esse “retrato do Brasil em seu coração”, como ele define, é ambientado na periferia carioca:  “O Rio de Janeiro deveria ter se transformado depois da Copa, mas deu tudo errado, na minha visão. Também tem a questão da intervenção militar, pela qual fomos contaminados durante as gravações na Rocinha, em junho deste ano”, comenta.

A ideia foi criar um microcosmo para discutir temas urgentes no país como cotas, racismo e desigualdade de oportunidades, sem cair em estereótipos que aparecem com frequência quando se retratam pessoas negras no cinema. “É a história de um estudante de medicina negro, cotista, que precisa estudar três cadáveres de pessoas também negras na faculdade”, conta. “A maioria dos negros no Brasil não é bandido, jogador de futebol e nem sambista”, enfatiza o diretor. Atrás das câmeras, a produção conta com maioria de profissionais negros, como Cristiano Conceição, que assina a direção de fotografia. “É um grande artista que percebe a luz brasileira na pele negra”, elogia o diretor.

Primos distantes

Jeferson De é comparado pela crítica e pelos colegas de trabalho ao diretor norte-americano Spike Lee, cineasta que conquistou projeção mundial com filmes sobre os guetos norte-americanos. “Eu não gosto não [risos]. A maneira como nós, negros, somos tratados no Brasil é muito diferente. Aqui, se admite o racismo e ninguém assume que é racista. Nos Estados Unidos, o branco é branco, o preto é preto, o judeu é judeu, o recorte é preciso. Aqui se fala que o cara é ‘meio preto’, ou ‘mulato’, o que denota uma certa bagunça, uma busca de identidade”, reflete.

Spike Lee, 61 anos, acaba de lançar seu novo filme, Infiltrado na Klan, que conta a história verídica de um policial negro que, nos anos 70, se infiltrou entre os seguidores da Ku Klux Klan, organização que defende a supremacia branca. Para Jeferson, grande admirador de Spike Lee, o filme é uma reflexão sobre o momento atual dos Estados Unidos e do mundo. “O cineasta sempre é um profeta. Ele discute a ideia de supremacia branca, que voltou a ser notícia recentemente. Você acha que tá vendo uma ficção mas é a realidade norte-americana.”

Além de se inspirar na forma como o norte-americano retrata a cultura urbana, Jeferson se empolga com o que considera uma nova fase do cinema negro, que vem com produções como Moonlight (2016), vencedor do Oscar de melhor filme em 2017, e Corra! (2017). “Moonlight, por exemplo, é um filme sobre um homem negro, homossexual e traficante. Nós, brasileiros, jamais o produziríamos como um filme comercial, que pudesse ganhar um Oscar. É um filme sobre sensibilidades que precisamos ter como referência.”

Cinema feijoada

A história do cineasta paulista com o cinema começa na infância. “Meu pai era uma espécie de líder comunitário da região rural de Taubaté e sempre buscava um projecionista de outra cidade para exibir filmes numa quadra de futebol de salão. Eu acompanhava todo o processo”, relembra.

Fascinado pelo o que acontecia nos bastidores das projeções, ele tentava imaginar a mágica que fazia com que os personagens saíssem das latas com rolos de filme para o lençol branco usado como tela, como uma versão tropical do clássico Cinema Paradiso, filme franco-italiano lançado na década de 80. “Quando vi esse filme, pensei ‘pô, eu vivi isso!’”, se empolga o diretor.

A paixão o levou para o curso de cinema da USP (hoje chamado de audiovisual), em que se percebeu num universo elitizado, sendo o único estudante negro da turma. “A universidade era um lugar de embate para mim. Ali, eu fiz uma pesquisa sobre cinematografia negra e lancei o Dogma feijoada, que é um manifesto em prol do cinema negro no Brasil, nos anos 2000, época em que falar sobre protagonismo negro não era algo tão óbvio”, explica.

O Dogma feijoada foi criado num dia em que Jeferson estava comendo feijoada com um amigo. Eles comentavam sobre o Dogma 95, manifesto criado na mesma época pelo diretor Lars von Trier, que propunha caminhos para o cinema dinamarquês. “Ele sugeriu que meu estudo sobre cinematografia negra podia ter um cunho mais popular. No cinema negro, a gente faz filme com os restos, não com as partes nobres, assim como a feijoada era feita pelos negros escravizados. Trazemos personagens e histórias que foram deixados de lado”, explica.

O protagonismo de pessoas negras no cinema, seja na frente, seja atrás das câmeras, caminha a passos lentos e é fruto de uma luta histórica: “O Dogma feijoada, por exemplo, só foi possível porque existem cineastas como Adélia Sampaio [primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil] ocupando esse espaço.” Por isso, Jeferson De trabalha para que as narrativas sobre o Brasil sejam mais diversas, em todos os sentidos. “A assinatura da Princesa Isabel, celebrada por ter instituído a Lei Áurea, serviu para apagar toda a trajetória de luta dos meus antepassados. É fundamental que a gente tenha a consciência de que tudo o que está acontecendo hoje é fruto dessa luta”, lembra, em um pensamento que explica a importância do tipo de cinema que  busca fazer.

Um levantamento da Ancine deste ano (o primeiro elaborado com recorte racial no Brasil) revelou que apenas 2% dos diretores de cinema brasileiros são negros, número que não passa de 1% em relação às mulheres negras. “Quando a gente pensa em cineasta brasileiro, pensa num cara branco, hétero, de família rica, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. E essas pessoas fazem filmes para falar sobre o que é o povo brasileiro. Nós também queremos contar nossa versão da história e colaborar com outras visões sobre o Brasil”, sentencia.

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