Aqueles dias em Havana

por Milly Lacombe
Tpm #174

Nem tudo o que conseguimos encarar de frente podemos transformar, mas nada pode ser transformado se não for encarado de frente

A ideia de ir para Cuba nasceu bem antes de as redes sociais me mandarem ir, mas ganhou cores durante um fim de tarde de dezembro, quando a companhia ideal topou viajar comigo. Na madrugada do sábado de Carnaval, ela e eu embarcamos para Havana via Lima.

Eram 4 da tarde quando chegamos à ilha. O ritual de passar pela imigração 
e pegar as malas exigiu paciência. Mas para quem, como eu, já perdeu quase 
duas horas da vida em uma fila de imigração no aeroporto de Newark, em Nova York, nada é muito diferente, nem mesmo a carranca do agente imigratório, um ofício que, aparentemente, no mundo inteiro recruta os seres humanos mais mal-humorados e azedos. Pés para fora do aeroporto, enxergamos Havana. Céu de um azul brutal, calor, muita gente na rua, carros mais antigos do que eu. Cores, cheiros, nuances novas e a paisagem caribenha de coqueiros por todos os lados. Avenidas limpas e largas, trânsito fácil e chegamos à residência da família que nos hospedaria, em Vedado, um bairro central de casas coloridas, muitos hospitais, escolas e clínicas.

LEIA TAMBÉM: Todos os textos de Milly Lacombe

Ir para Cuba ainda é uma subversão. A ideia de que o comunismo obriga a população a usar o mesmo macacão acinzentado e andar de cabeça baixa pelas ruas existe até hoje dentro de algumas mentes, que certamente se surpreenderiam com os 
outdoors da Samsung anunciando o Galaxy S7 no aeroporto. Foram, no entanto, os únicos outdoors que vimos nos quase seis dias que estivemos por lá. Também não passamos por nenhuma GAP, Starbucks ou Burger King.

Na companhia de um casal de amigas brasileiras que mora na ilha há alguns anos, conhecemos a Cuba dos cubanos e das cubanas. Fomos jantar em alguns dos melhores paladares (restaurantes familiares que ficam quase sempre na casa dos proprietários). Visitamos a Fábrica de Arte Cubano, um espaço que abre à noite e reúne exposições, lojinhas, apresentações musicais, bares e restaurantes misturados em ambientes de diferentes tamanhos e frequentado pela parcela jovem da população. A entrada custa dois CUC, uma moeda alternativa ao peso e que equivale ao dólar.

Gozo

O cubano não é obcecado por trabalho e entende que o lazer é parte de seus direitos. Marx de fato acreditava que o trabalho era muito mais do que um jogo econômico e deveria envolver os sentidos, o corpo e as suas necessidades, a noção de cooperação social, de satisfação, de gênero, de sexualidade e de solidariedade. Como se todo o homem e toda a mulher fosse um tipo particular de artista, e não todo o artista um tipo particular de homem ou de mulher – um conceito de trabalho radicalmente diferente do que aquele que aprendemos nas escolas e que estampa os cadernos de economia dos jornais.

Há, aliás, muitas escolas em Havana e não existe criança que não esteja em uma, muito menos dormindo nas ruas. Não há sem-teto em Cuba, embora haja pobreza, especialmente no centro da cidade. 
Já que gastos com saúde, moradia e educação são mantidos e subsidiados pelo governo, não existem preocupações que, para quem cresceu no capitalismo, são primordiais: aluguel, hospitais, médicos, escolas, ensino superior. Não dá para imaginar como seria a vida sem essas inquietudes.

Por outro lado, não há também algumas das coisas que aprendemos a avaliar como privilégio: lojas caras, restaurantes do Guia Michelin, carros modernos, tecnológicos e blindados, mansões particulares de enormes jardins. Em compensação, havendo interesse e conhecimento, é possível conversar com qualquer cubano a respeito da obra de Puccini, de Verdi ou de Borges, do barroco colonial ou da literatura caribenha contemporânea.

No fim do dia, as praças e a avenida à beira-mar ficam repletas de cubanos jogando conversa fora ou dominó e esperando pelo pôr do sol. Em Cuba, o lazer é coisa séria. Estávamos por lá no Dia dos Namorados, ou, como eles chamam, “o dia do amor”, e o romantismo transbordava pela cidade. Andando de mão dada com a minha namorada, fomos abordadas duas vezes por homens que, em diferentes ocasiões, disseram: “Viva o amor!”.

Não vi igrejas, não vi imagens sagradas, não há uma religião oficial em Cuba. É como se a espiritualidade passasse por alimentar aqueles que têm fome, receber o imigrante, cuidar da saúde de quem precisa, proteger o pobre de violências.

Brasil via Cuba

Em Havana, lembrei de um trecho do livro O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, que fala do diálogo entre um colonizador e um índio, registrado pelo primeiro pouco depois que os portugueses aportaram por aqui.

“Por que vem de tão longe buscar madeira? Não tem na sua terra?”, quis saber o índio. O português disse que sim, mas não naquela quantidade e que a madeira não era usada para ser queimada, mas para o tingimento. O índio perguntou se precisavam de tanta madeira para tingir, e o colonizador explicou que em sua terra havia negociantes que possuíam 
mais panos do que ele poderia supor e que eles eram tão ricos que, sozinhos, compravam um navio inteiro de pau-brasil. “Ah, tu me conta maravilhas”, disse o índio. “Mas esse homem tão rico de que me fala não morre?”, perguntou. “Morre como todos”, disse o português. O índio então quis saber para quem ficava aquela quantidade toda de madeira depois que o homem morria. “Para os filhos”, disse o colono. E o índio, finalmente: “Mas então vocês são todos loucos. Atravessam mares, sofrem grandes incômodos, trabalham tanto para amontoar riquezas para filhos? Não será a terra que nutriu vocês suficiente para alimentá-los? Temos pais, mães e filhos a quem amamos, mas estamos certos de que depois de nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados”.

O poeta e escritor americano James Baldwin disse que nem tudo o que conseguimos encarar de frente podemos transformar, mas nada pode ser transformado se não for encarado de frente. É hora de aceitar que o capitalismo morreu e que, embora não haja ainda um arranjo suficientemente bom para substituí-lo, trata-se de um sistema que, se não for trocado a tempo, destruirá a todos nós – de fome, de exaustão, de fobias, de miséria, de angústias, de dívidas. O futuro, se ele existir, passa por Cuba e pela forma doce, leve e colorida como se vive por lá.  

Créditos

Imagem principal: Goia Mujalli

fechar