Do Morro pro Asfalto

por Kátia Lessa

Conheça João do Morro, o açougueiro que se tornou o maior hitmaker pirata de Pernambuco

Em menos de um ano, João Pereira da Silva Jr. arrumou outra especialidade. Trocou os facões agudos por uma língua ainda mais afiada e deixou a carne moída light, que lhe rendeu um emprego como açougueiro durante seis anos, por platéias pra lá de gordas. Mais novo fênomeno da música pernambucana, virou celebridade espontânea depois de bombar em carros de som com uma gravação pirata, no melhor estilo Tropa de Elite.

Conhecido agora como João do Morro, o recifense desceu a ladeira e invadiu o asfalto. Seu bom humor, que se reflete nas letras espertas, conquista platéias cada vez mais maiores, inclusive em lugares inesperados, como o festival RecBeat . Prestes a lançar seu primeiro CD oficial, ele fala com a Trip.

Quem te ensinou a tocar?
Meu pai era da banda da aeronáutica. Ele e meus três irmãos mais velhos tocavam na Galeria do Ritmo, uma escola de samba no Morro da Conceição. Eu era muito novo e não tinha idade para ensaiar com a bateria, então pegava o documento do meu irmão e fazia de conta que era ele. Foi lá que eu aprendi.

Você estudava?
Larguei a escola na oitava série porque engravidei minha namorada e tive que trabalhar. Antes disso eu tocava com outras bandas, num pagode, ali, num boteco aqui...Eu fazia muito piquenique.

"Minha especialidade era a carne moída. Eu fiquei famoso lá porque era bom de fazer uma carne moída sem muita gordura"

Piquenique?
É, o pessoal ia para a praia de ônibus e nós íamos com os instrumentos lá no fundão, tocando pra animar o povo. Assim não pagávamos pela comida e nem pelo transporte. Mas eu largava as bandas, porque ninguém queria fazer trabalho autoral, só tocavam hits de grupos famosos.

E quando deixou a escola você foi trabalhar com o quê?
Eu tinha 19 anos. Então fui contratado por uma firma para fazer serviços gerais para uma rede de supermercados. Depois passei a trabalhar no açougue. Primeiro na embalagem, depois fui balanceiro e por último no balcão.

Ficou muito tempo por lá?
Seis anos. Minha especialidade era a carne moída. Eu fiquei famoso lá porque era bom de fazer uma carne moída sem muita gordura. Eu não tinha final de semana, nem almoçava. Ficava olhando os açougueiros mais experientes para aprender todos aqueles cortes. Ralava pra caramba.

E a música nisso tudo? Quando voltou?
Eu nunca parei totalmente. Fazia bicos em bares. Aí um dia comecei a achar que a carta que a Princesa Isabel fez tinha sido escrita a lápis, e que alguém tinha apagado tudo. Tinha vida de escravo. Então, como minha filha já era um pouco maior, pedi para o meu chefe me demitir e, com a grana, comprei uns instrumentos e voltei a tocar.
  
E foi viver disso, de tocar?
Virei músico quebra-galho. Tocava em bares, roda de samba, festinha, cobria a falta de músico em várias bandas. Nesse tempo também comecei a compor. A banda Inimigos da HP até gravou uma música minha, mas ninguém sabe. O “Pagode do boquete” é de 1994.

Suas músicas já eram debochadas desde essa época?
As músicas que eu canto hoje são quase todas daquela época. Eu sempre fiz o estilo cronista social. Quero cantar o cotidiano. O que me diferenciou foi a ousadia, eu falo coisas simples com as quais as pessoas se identificam. A menina que faz chapinha, o boyzinho que anda todo, todo. Eu adorava Mamonas Assassinas, Chico Science, esse povo espontâneo

Mamonas e Chico, que mistureba! Quais suas outras influências?
Mistureba! Adorei essa palavra. Ta aí, vou fazer uma música da mistureba! (risos) Coisa de paulista.

"Tava andando pelo morro, sossegado, com meu chinelão, quando veio a carroça de som tocando 'Balaiagem'”

Você fez sucesso devido à pirataria. Como é sua relação com a prática?
Olha, eu sei que é ilegal, mas a pirataria me fez, e eu não posso negar isso. E mais, eu quero retribuir. Pretendo distribuir meu CD nas carroças de som, dar camiseta. Não quero ficar longe do povo. Escuto muita gente dizer que o Calypso, por exemplo, que tem um caso parecido com o meu, abandonou o povo, só toca em casa de show cara. Eu não concordo. Acho que foi o governo que não acompanhou o sucesso deles. Eles são tão grandes que não tem mais lugar com infraestrutura suficiente para apoiar o show deles. Uma das minhas idéias para combater isso é criar um trio elétrico para poder tocar sempre para as pessoas que não têm dinheiro aqui do morro. Quero também montar uma escola de música para menores carentes, isso pode mudar a vida de muita gente, como mudou a minha.

Quando foi que você escutou sua música nas ruas pela primeira vez?
Tava andando pelo morro, sossegado, com meu chinelão, quando veio a carroça de som tocando “Balaiagem”. (...) tem mulher que vai no salão pra dar massagem e escova/ e passa o dia inteiro no estica e puxa /se bater um pingo da chuva, o cabelo fica feito bucha (...) Primeiro não reconheci minha voz, depois percebi que era eu ali. Eita porra! O vendedor ofereceu o CD, disse que custava cinco reais, que era sucesso, lançamento. Comprei e vi que não tinha foto minha na embalagem. A capa era um xerox da imagem de Nossa Senhora. Depois começou a tocar em todo canto.

Suas músicas têm muitas referências regionais e locais, do morro. Como você acha que isso vai ser assimilado pelo público fora do eixo no qual você é sucesso hoje?
Não vou mudar o dialeto para agradar ninguém. Quero mais é levar a cultura da minha realidade para outras regiões. O pessoal do sul vai conhecer nosso repertório, nossas gírias, nossas ruas, nosso morro.

No nordeste você já faz muito sucesso, e seu disco vai ser trabalhado no Rio e São Paulo nos próximos meses. Isso te preocupa?

Nunca tinha saído de Recife antes de viajar para fazer shows. Se minha música chegar a São Paulo e um dia eu puder ir até lá para tocar já estou no lucro. Estou aqui só esperando esse momento. Quero mostrar que no meu morro tem de tudo, viver da minha música e dar uma boa condição de vida para minha família.

Você só tem uma filha?
Dois. A menina é a mais velha, Tatiele. E tenho também o João Vitor, de 7 anos. São de dois casamentos diferentes. O menino vai comigo para tudo que é show, a menina eu preservo porque tem muito homem na equipe, sabe como é.

Quando você notou que estava famoso?
A ficha ainda não caiu direito, eu morro de vergonha. Continuo morando na mesma casa porque planta que não tem raiz, murcha. Caminho por aí com meu chinelão numa boa, mas ficou difícil comer em restaurante com a minha família. Eu tenho que ligar antes e reservar uma área escondida.

O assédio te perturba?

Eu não ligo, mas às vezes minhas família fica chateada. Meu filho já faz aquela cara de 'ai...lá vai ele ficar tirando foto com os outros'...

E a mulherada?

Isso melhorou, né! Antigamente a mulherada não me queria nem para dançar quadrilha. Eu tenho uma namorada, e ela é loira. Um dia estávamos no shopping e uma pessoa disse: Olha só...só tá com ele pelo dinheiro. Aí eu fiquei puto. Pô, não sou bonitão, não? (risos)

"Sou metrossexual. Faço a sobrancelha, unha, cabelo, aplico óleo na tatuagem que fiz há cinco meses"

Você respondeu?
Eu? Nada. Eu sou daqueles que se você pisa no meu pé eu peço desculpas. Fico chateado por ela, mas não gosto de confusão não.

Falando em confusão... Vi umas imagens suas no festival RecBeat, em Recife. Era um show grande, e você estava muito emocionado. O que aconteceu ali?
Até mesmo no Recife eu tive que enfrentar muito preconceito. Não queriam que eu tocasse no RecBeat porque achavam que meu som era popular demais. Virei alvo de críticas terríveis em blogs e sites, e fui ameaçado. Diziam que se eu subisse no palco iria levar latinha na cabeça.  Tremi na base, fiquei com medo mesmo. Tava tão preocupado e tão triste que liguei para meus amigos e minha família e disse que o show tinha sido cancelado por causa da chuva. Não queria que eles vissem o vexame.

E você abriu o festival?
Sim. Fiz o primeiro show da noite, no pior horário, e o lugar lotou. O povo gritava: “Uh! Fudeu! João do Morro apareceu!” Teve até bis.

Você parece um cara vaidoso. Tem essa tatuagem enorme, o cabelo bem cuidado...
Sou metrossexual. Faço a sobrancelha, unha, cabelo, aplico óleo na tatuagem que fiz há cinco meses...Tenho que ficar legal para o meu público.

E a grana? O que mudou na sua vida?
 Meus filhos estão em escola particular. Não falta mais para o sustento, a alimentação, roupa, Tem gente que ganha o primeiro dinheiro e vai comprar carro zero. Eu reformei a casa da minha mãe. Parece um sonho, eu mobiliei tudo e tirei ela do tanque. Agora minha mãe tem lavadeira.

O que você escuta quando está em casa?
Sou fã do Zeca Pagodinho e da Ivete Sangalo, que são artistas muito humildes. Mas em casa eu gosto mesmo é de escutar um reggae. Em 92 eu ouvi Bob Marley e nunca mais parei. Adoro Alpha Blondy, Gladiators, Pete Tosh. Também me amarro em salsa cubana. Tito Puente, Celia Cruz, essa turma toda. Rock eu praticamente não escuto, só na casa dos outros. Eu não gosto muito de guitarra, mas acho que preciso parar para escutar mais.

Nada de pagodão, funk, mulher-fruta?
Eu me amarro em mulher-fruta. Enjoou de um sabor corre logo pra outro. (risos)





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