Mendes: ”o que sofri na cadeia era parco diante do vasto prazer de estar ali”
Quando deixei a prisão fui saudar o mar. Tirei a roupa e, de calção de banho, entrei com os pés na água fria. O sol lambuzava tudo de amarelo. O que sofri na cadeia era parco diante do vasto prazer de estar ali
Quando preso, sonhava com praia e mar. A fúria fria das ondas, as garotas de biquíni e aqueles caras andando no mar com uma tábua grudada nos pés. Ao sair, fui saudar o mar. Em Copacabana, virei para a esquerda e, na calçada dos prédios, fui caminhando até o bairro do Leme. Maior esforço para não olhar para o lado do mar. Tentava alongar o futuro para que não virasse presente de repente. Só quando cheguei ao fim da calçada é que invadi a areia da praia.
Algumas décadas me distanciavam do mar. Havia perdido tempo, mas não a noção do tempo. Tirei a roupa e, de calção de banho, entrei com os pés na água fria. Estremeci de prazer. Olhava o fundo do mar, querendo ver além do que os olhos viam. Buscava o que a imaginação desenhara na mente. Fiquei contente: o real era infinitamente superior ao imaginado.
Março, fim de temporada, mas o sol ainda tatuava ardido na pele. Devidamente lubrificado por filtros solares, sentia a areia fina se desmanchar embaixo dos meus pés. Um mar duro de águas metálicas refletia brilhos repentinos. O momento era grave. Minha insaciável inquietude me projetava para a frente. Aquilo era pouco e já não satisfazia.
Uma onda me atingiu de repente, assustando. Havia uma espessura, como um corpo tocável, ao mesmo tempo que algo se arrebentava ao longe com o som de mil trovões. Aquilo era poderoso como um deus e eu ali frágil como uma bolha de sabão. Pássaros voavam concentrados e pontas escuras de navios interrompiam a paisagem. Delicados sentimentos libertavam minha vida de seus últimos grilhões. Abracei o céu com os olhos enquanto sentia a alma se esparramar na brisa suave que vinha do mar.
Passei Copacabana namorando cada centímetro de pele que as reduzidas tangas não escondiam. Cheguei ao Forte de Copa animado. Subi na Pedra do Arpoador. Lá em cima, fui avançando pedra e mar adentro. Na ponta, onde o mar se abate sobre a rocha, parei e fiquei estático feito bobo, sem conseguir me mover diante de tamanha magnitude. Como deve ser fundo! Toda aquela massa de água sem fim... De repente uma onda mais forte socou a pedra e, prensada, a espuma espirrou para cima. Era suave borrifar. Senti como se aquele fosse um carinho, as boas-vindas do mar.
Não resisti mais e, na praia do Arpoador, entrei na água pra valer. Dava para ver o chão de areia até quando a água batia no peito. Brinquei, pulei e fui afogado pelas ondas. A água salgada queimava a garganta e enjoava o estômago. Diverti a mim mesmo qual fosse uma criança. Saí quando não aguentava mais ficar tomando caldo e cuspir água salgada. Meus dedos estavam enrugando. Passei Ipanema secando ao sol e percebendo o adensamento do povo na praia. As mulheres iam ficando mais belas, deliciosas ao meu olhar selvagem.
No Leblon, tudo parecia um grande prêmio e eu, o ganhador. Devorava de olhos ávidos. Os jovens magicamente navegando naquelas tábuas compridas; as crianças correndo loucas de alegria para o mar e os pais atrás preocupados; as moças lindíssimas volitando na areia ou jogando frescobol com pernas longas e nádegas soltas...
Silêncio amigo
Extrapolava cambiante, entre cores, texturas, cheiros, densidades e profundas reflexões. O sol lambuzava tudo de amarelo. Ventos largos me impulsionavam. De repente percebi que nós só temos a vida e desta vida só temos a nós. Só temos o momento em que estamos vivendo. Somos seres do instante e acumulamos memórias. Nosso tesouro.
Não seria porque aquele instante acabaria que ele deixaria de ser importante. Seria eterno enquanto durasse. Fiz o percurso de volta cada vez mais impressionado com aquela exuberância. Precisava de um amigo. Desses calados que, só de nos escutarem, já são ótimos. E falar, falar, falar, até me fartar. Saí andando pelas ruas sugando o gosto do resto do dia. Só podia agradecer estar vivo. Tudo o que sofri era parco diante do vasto prazer de estar ali existindo.
*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com