Para tratar dos problemas da sociedade é preciso antes criar normas civis sem a necessidade de mandar gente pra cadeia
Superar nossa mania de prisão é essencial para encontrarmos o caminho do desenvolvimento. Não é de hoje que, como país, temos a mania de achar que criminalizar resolve qualquer problema. Tem alguma coisa errada? É só passar uma nova lei criminal, aumentar pena, ampliar a abrangência dos crimes já existentes, que tudo se resolve. A aprovação de leis criminais tem um efeito catártico, quase ritualístico, no Brasil. Dá a impressão de que algo importante foi feito e que todos podem dormir em paz. Só para constatar no dia seguinte que nada mudou.
Um dos aspectos mais nocivos dessa mania de prisão é a vontade quase incontrolável de querer criminalizar o novo. Sempre que algo novo aparece no horizonte e não sabemos direito o que fazer com ele, alguém propõe criminalizar aquilo. A prática é assim: criminalize antes e pergunte depois.
Isso vem desde os tempos do Império. Por exemplo, quando a ideia do direito autoral moderno começou a se disseminar na Europa no século 19, o Brasil quis entrar na onda. No entanto, em terras brasileiras, diferentemente da tradição europeia, a primeira referência abrangente sobre direitos autorais foi parte de uma lei criminal. A tarefa ficou a cargo do Código Criminal do Império, de 1831. Ou seja, o mesmo texto legal que restabeleceu a pena de morte no Brasil (abolida pela revogação das Ordenações Filipinas) também tratou de criar os primeiros preceitos de proteção intelectual no Brasil. Foi preciso esperar até 1998 (com a promulgação da Lei Medeiros e Albuquerque) para o Brasil ter finalmente uma lei civil tratando de direitos autorais. Antes disso, o assunto era tratado na base do crime.
Quem acha que tratar temas ligados à gestão do conhecimento com leis penais ficou lá no século retrasado engana-se. Na discussão sobre a regulamentação da internet no Brasil, tentou-se seguir a mesma fórmula dos tempos do Império. A primeira proposta que decolou para lidar com a regulamentação da rede brasileira foi uma lei criminal, a Lei Azeredo (nome dado ao Projeto de Lei 84 de 1999, por causa de seu maior defensor, o então senador Eduardo Azeredo).
Lei Carolina Dieckmann
Só que nesse caso houve uma grande reação da sociedade contra a criminalização da internet (reação esta organizada, curiosamente, também pela internet). Com isso, a Lei Azeredo cedeu espaço para a ideia do Marco Civil, lei civil (como diz o nome) que acabou sendo aprovada em 2014. É claro que, para não romper a tradição secular, antes do Marco Civil, o Congresso aprovou a chamada “Lei Carolina Dieckmann”. Com isso mantivemos a prática de criminalizar algo antes de lidar civilmente com ele (só que, felizmente nesse caso, com uma lei penal equilibrada, bem diferente da Lei Azeredo).
Para o futuro, que tal concordarmos com o seguinte: o direito criminal deve ser visto como exceção, e não como regra. Para tratar dos problemas da sociedade é preciso criar normas civis, que orientem o comportamento social, mas sem a necessidade de envolver a polícia ou mandar gente para a cadeia. O direito penal deve ser visto como ultima ratio, ou seja, último recurso a ser utilizado quando tudo mais dá errado. De outra forma, vamos continuar passando o carro na frente dos bois. E delegando preguiçosamente para a polícia e para o sistema prisional a tarefa de resolver problemas que deveriam ser tratados no âmbito das normas sociais. Continuar a fazer a mesma coisa (neste caso, há séculos) e esperar que o resultado vai ser diferente, que vai dar certo dessa vez, é coisa de maluco.
*Ronaldo Lemos, 39, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e apresenta o programa Navegador na Globonews. Seu Twitter é @lemos_ronaldo