Desbunde é o que nos resta

por Alê Youssef
Trip #240

Nos anos 70, o movimento do desbunde propunha buscar um pensamento alternativo ao sufocante contexto político e social da ditadura. Hoje é uma forma de encarar a vida com mais alegria, combatendo o excesso de pragmatismo

Já estávamos todos altos e agitados no dia que fundamos o bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, em São Paulo, quando o Leo Madeira, nosso compositor e especialista em trocadilhos, proclamou: “Apavora mas não assusta, o Carnaval do Baixo Augusta!”.

Surgiram os ministérios inusitados representando a diretoria, como o ministro dos Cortes Públicos, das Minas com Energia, da Imagem com Ação, dos Recursos Hídricos etc. Não demorou muito para a nossa dupla publicitária, Felipe Cama e Ale Lucas, bolar a identidade da bagunça: uma caveira debochada de cartola e óculos Ray-Ban. Estava formada a quadrilha.

Pouco tempo depois, sem pedir autorização pra ninguém, saímos do lindo bar Sonique, na rua Bela Cintra, viramos na pirambeira da rua Costa e tomamos a rua Augusta em direção ao saudoso Studio SP. O que era uma brincadeira maluca de amigos já dava sinais de que poderia alterar a rotina do Carnaval da cidade nos primeiros 15 minutos de desfile. O porta-estandarte, Marcelo Rubens Paiva, já se perdia em meio a uma pequena multidão que misturava famílias, punks, clubbers e as famosas trabalhadoras da rua. Marisa Orth, primeira madrinha do bloco, desfilava de forma improvisada e bela sobre o capô do carro que puxava o cortejo. Os órgãos públicos não gostaram da brincadeira e a PM até deu voz de prisão para este que vos escreve.

O bloco já nasceu desbundado e nos anos seguintes só intensificou sua vocação, quando desfilou parado em um estacionamento fazendo homenagens sinceras ao ex-alcaide e atual ministro que na época proibira o desfile; ou quando gritou “Ocupa a Augusta” com uma caveira guerrilheira desafiando quem ousasse impedir a alegria; ou ainda no ano em que distribuiu o flower power depois de tanta guerra nas ruas.

ABAIXO A CARETICE

Nos anos 70, o movimento do desbunde propunha buscar um pensamento alternativo ao sufocante contexto político e social que a ditadura impunha. A contracultura era uma alternativa de questionamento lúdico e comportamental daquela realidade. Hoje, o desbunde é encarar a vida com mais alegria, combatendo a caretice, o mau humor, a arbitrariedade e os preconceitos. Em um mundo dominado pela realpolitik que engessa a prática política através de currais eleitorais e conchavos, o desbunde é uma alternativa para quem quer ter voz.

Bunytos de Corpo, Viemos do Egito, Buraco da Lacraia, Quanta Ladeira, Voodoohop e tantos outros grupos estão desbundando pelo Brasil em resposta à overdose de pragmatismo da vida. Este ano, o bloco Acadêmicos do Baixo Augusta celebra essa volta do desbunde em seu grito carnavalesco, que com certeza ecoará muito além do próprio Carnaval e da rua Augusta.

O desbunde é o que nos resta.

PS: #JeSuisCharlie.


*Alê Youssef, 40, é apresentador do programa Navegador, da GloboNews, analista político e presidente do Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. Seu email é alexandreyoussef@gmail.com

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