Desacelera, Arthur!

por Arthur Veríssimo
Trip #181

Numa charrete, Arthur Veríssimo encarou a rodovia Raposo Tavares em nome da desaceleração

Seis milhões de veículos para 11 milhões de pessoas. Mais de um carro para cada dois habitantes em São Paulo. Um recorde de 295 km de congestionamento registrado em 10 de junho deste ano. E 800 veículos novos despejados por dia nos 16.000 km de vias asfaltadas da cidade, no embalo da isenção fiscal para a indústria automobilística. Só podia dar merda!

E agora, o que fazer antes que o trânsito paulistano pare num blecaute generalizado e as pessoas saiam às ruas barbarizando como o personagem de Michael Douglas no filme Um dia de fúria? Os especialistas falam em pontes, rodoanéis, ampliação das marginais e do metrô, rodízio estendido e pedágio no centro e por aí vai. Mas eu, Arthur Veríssimo, tenho uma solução muito mais simples, barata e ecológica: o revival da boa e velha carroça.

Na Índia, na China, no Peru, na Tailândia, na Colômbia, na Indonésia, em Moçambique, em Madagáscar, as carroças e seus primos continuam a colorir e ilustrar o transporte dos seres humanos. Preocupadas com o aquecimento global, as prefeituras de 70 cidades da França estão substituindo veículos motorizados por charretes a cavalo para realizar serviços públicos. Em Paris e Lyon, por exemplo, elas são usadas para coletar sacos de lixos nos parques e regar plantas.

RIQUIXÁS E JERIQUIXÁS
Minha experiência com veículos movidos a tração humana e animal, como riquixás e jeriquixás, esparrama-se por todos os continentes. Mas aqui na minha terra eu nunca havia sentado em uma carroça. O trânsito louco de São Paulo nunca foi terreno propício para cavalgaduras. E, no ano passado, o prefeito Gilberto Kassab acabou de vez com qualquer chance de bucolismo na cidade ao assinar o decreto n° 49.525 proibindo a circulação de veículos movidos a tração animal na região metropolitana e expulsando de suas ruas 2.500 carroças puxadas por cavalos e pouquíssimos bois. Segundo o decreto, quem contrariar a lei terá sua carroça, mercadoria e animal apreendidos pela Companhia de Engenharia de Tráfego.

Nesse cenário de terra arrasada, meu primeiro desafio foi encontrar uma boa carroça. Resolvi vasculhar bairros afastados da região metropolitana de São Paulo. Na região do km 25 da rodovia Raposo Tavares, perto da Granja Viana, localizei um grupo de amigos que conserva suas charretes e cavalos como se estivessem em um Shangri-lá.

MINHA EGUINHA POCOTÓ
Meu anfitrião foi Anderson Neto, mais conhecido como Tola, que cedeu sua charrete e sua égua Trovoada para este repórter circular pela Raposo Tavares e degustar o vento fresco de um domingão ensolarado. Tola vive em outra sintonia em meio ao caos paulistano. Todo ano, na última semana de setembro, ele participa de uma romaria a Pirapora do Bom Jesus com sua turma de charreteiros.

Antes do passeio, Tola me deu todas as informações sobre seu veículo: sua charrete custa R$ 1.500, mais R$ 1.200 com os arreios; a manutenção sai por R$ 200 por mês, incluindo ferraduras. Já os gastos com Trovoada somam mais R$ 300, já que ela consome
6 kg de ração por dia para manter em forma seus 400 kg de peso.

Como uma Cinderela chegando ao baile ou um membro da Família Buscapé em busca da antológica Brejo Seco, comecei a deslizar com minha charrete, controlando com desenvoltura os movimentos de Trovoada. Conectei-me com histórias de vidas passadas, quando eu usava bigas, cabriolés, quadrigas e carruagens.

CADÊ MINHA FRALDA?
Mas, na boca da saída para a famigerada Raposo Tavares, uma tremedeira deixou-me em suspenso: a velocidade dos veículos era totalmente desproporcional ao balanço suave e cadenciado da charrete. Quase requisitei uma fralda para a produção. Um verdadeiro oceano de caminhões, carros e ônibus trafegava em alta velocidade. Pensei trocentas vezes se entraria nessa barca furada de transitar por uma rodovia – o que é tão proibido quanto nas ruas da capital e mil vezes mais perigoso.

O tempo passava e o cagaço aumentava. Quando coloquei a cabecinha da Trovoada na beirada da pista, um bumba aloprado passou raspando e quase nos engoliu. Estava encanado com tudo, principalmente com o posto policial logo adiante. Nossa sorte é que estava vazio.

Quando o caldo parecia ter entornado, encontrei uma estradinha paralela à Raposo. Relaxei, saí galopando com a minha eguinha Pocotó e pude curtir a sensação maravilhosa de desacelerar na metrópole. Além de tudo, não poluí o meio ambiente ao circular com um veículo sem emissões malévolas. Apenas as fezes biodegradáveis de Trovoada marcaram nossa jornada.

Ao final, ofereci à singela e bem cuidada Trovoada um buquê de cenouras como prêmio. Ela não se fez de rogada e devorou duas dúzias. Fiquei encantado com a eguinha, dei uma bela escovada em todo o seu corpo e fiz muitos agrados em sua mandíbula.

Depois de cinco horas de aventura, acho que dei minha modesta contribuição para resolver o tenebroso problema do trânsito nas grandes cidades. Agora vamos refletir juntos e pensar em novas ideias. Trem-bala para Shambala, trenó escolar, viadutos sobrepostos, sistema coletivo de bike. Vale tudo!

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