Kiko Goifman usa bate-papo e antropologia para entrar no mundo jovem em seu programa de TV
Gays evangélicos cantam músicas de louvor com pulseiras do arco-íris no pulso. Um rapaz zanza pelo ar com inúmeros ganchos presos à pele das costas. Em seguida, a testa de um rapaz que implantou chifres aparece enquanto ele explica que é uma pessoa normal. O cineasta Kiko Goifman foi buscar em São Paulo diferentes grupos de jovens que se reúnem por alguma razão – religião, estética, esporte, lazer. Em comum, todos têm uma forte apelo de identificação que se desdobra em diferentes expressões: arte, fé, línguas bifurcadas, manobras em corrimãos.
Trata-se do programa Hiperreal, transmitido pelo Sesc TV desde dia 11 de dezembro de 2009 e que terá 26 episódios de uma hora. Na pauta, jovens agrupados em torcidas organizadas, em grupos de cosplay ou praticantes de luta-livre. Goifman conta que procurou ter o olhar distanciado de um antropológo sem perder a espontaneidade do bate-papo. Saiba que tipo de surpresas o diretor teve ao se embrenhar no universo jovem nesta entrevista à Trip.
Qual o fio condutor do Hiperreal?
É um programa semanal de uma hora. O que todos têm em comum é que todos são sobre um grupo de jovens. A intenção é que cada programa seja sobre um grupo específico. São bastante diferentes. Alguns estão juntos por alguma atividade física – skate, bike, outro por uma questão de nacionalidade – palestinos, bolivianos, ou por uma questão religiosa, identificação artística – stickers, steam punk (uma galera que gosta de um gênero de literatura fantástica. Há muitas coisas singulares e em comum [entre eles]. A base do Hiper Real é quase um documentário. Seria leviano falar em documentário, mas a ideia é um mergulho em cada grupo. Existem várias coisas em comum. Por exemplo, o fato de que todos eles se auto-representam, criam imagens sobre eles mesmos. Em alguns isso é completamente evidente, por exemplo, os skatistas, que se descem um corrimão e não registra, não vale nada. Todos esses grupos têm em comum a utilização da internet como forma de troca de informações, e alguns só existem a partir da internet; não que eles não combinem encontros, mas um perceber ao outro e saber que existe um gosto em comum, só a partir da internet.
Todos os episódios acontecem em São Paulo?
Eu trabalho com uma ideia de São Paulo expandida. Considerando que ABC é aqui, o lugar mais longe para o qual fomos, foi Mogi [das Cruzes], a uma hora daqui. Essencialmente são em São Paulo, mas se eu preciso falar com alguém usando ferramentas como o Skype, eu faço.
A etnografia [método antropológico de descrição de grupos sociais] tem influência no programa?
Tem a ver. Eu sou antropólogo de formação. Acho que isso determina desde cara o desejo de pensar em termos de grupo. Nenhum dos programas vai tratar de um cara que se destacou, algum jovem, será o grupo. E me interessam grupos nesse sentido maior: seus símbolos, a questão visual. Essa é uma questão que marca todos [os grupos]: não poder entrar [vestido] de verde na sede da Gaviões da Fiel, ou nos casos do body art e do cosplay. A identificação, o pertencer ao grupo, é comum a todos. Eu não faço filmes de observação etnológicos. O tempo todo eu converso com as pessoas, bato papo, são diálogos, não existe um enorme distanciamento. Mas existe uma série de coisas que têm a ver [com o método antropológico], que são o respeito ao outro que interpreta os próprios cotidiano, grupo e mundo, eu tento me despir de um certo etnocentrismo e tento perceber como eles constróem os grupos, como veem os grupos, como percebem o mundo.
Como você definiu quais grupos seriam retratados?
Tem um aspecto muito legal nessa história que é poder trabalhar na TV, só que a partir de uma equipe da nossa produtora. No Sesc TV temos uma liberdade de olhar e de tema. Para definir o tem, partimos de uma diversidade de motivos para estar junto: “Ah, não vamos pegar só a turma do esporte. Também não vamos pegar só diferentes religiões”. A partir disso, sentamos e começamos a levantar temas. Sempre tenho a preocupação de que haja desde coisas pouco conhecidas como steam punks e homossexuais evangélicos, até temas mais conhecidos, skate, Gaviões da Fiel. Nestes temas, tentamos fazer uma abordagem que não seja igual às outras já existentes. No caso da Gaviões, vamos arrumar um personagem que seja bundão, e que na hora da briga ele corra.
Foi difiícil o acesso a alguns dos lugares, como a Gaviões da Fiel o body modification?
Nesses casos, não. É engraçado. Na Gaviões, não. Tem que avisar para a equipe toda que de verde não entra, é o básico. Outra coisa é que não pode usar brinco, mas quem é membro. Eu não precisei tirar meu piercing da orelha. Mas eles me receberam muito bem e foram bastante sinceros. Eles me perguntaram se eu iria enfocar a violência e eu respondi que também, claro que sim, mas que eles iriam poder falar o que acham da acusação de serem violentos. Não tive dificuldades. O pessoal de body modification é incrível, eles são uma doçura. Receberam a gente muito bem. Foi tudo muito tranquilo, filmar suspensão (quando alguém é suspenso no ar por ganchos enfiados nas costas]. No caso dos jovens detetives, um número grande deles não quis se identificar, mas toparam falar.
Então foi tranquilo entrar em todos os lugares? Nenhum ofereceu dificuldades?
Tem sim. Por exemplo, numa oficina onde trabalham bolivianos ilegais, isso não é uma coisa fácil. No fim, acabamos conseguindo uma. Não tem negócio, você quer, não filma. Conseguimos com uma pessoa que está desativando a [oficina] dele. Ele deixou filmarmos e topou falar. E cada um tira suas consclusões sobre se ele é um explorador de bolivianos ou não.
O que você descobriu fazendo o programa?
Por exemplo, a relação com o pessoal da body modification. São pessoas completamente doces. Cheguei meio constrangido, achei eles um pouco arredios por conta de uma imagem que eles sempre carregam junto à midia de que são monstros. O começo foi tímido. Depois de um certo momento, quando eles sentiram confiança e eu também, virou um bate-papo de amigos. Um dos caras tem chifres de silicone, um visual pesado. Batendo papo com o cara, você descobre que ele não bebe, não fuma, é um ótimo estudante de veterinária, já tem duas empresas. Quatro chifres e duas empresas! É muito legal estar sendo sempre surpreendido, parar para ouvir as pessoas, bater um papo.
Hiperreal
Direção: Kiko Goifman
Todas as sextas-feiras, às 21h no Sesc TV (em São Paulo, canal 137 da NET Digital e 3 da SKY; para consultar outras cidades, consulte o site do canal)