Henrique Goldman conta como a África do Sul tenta esconder do mundo sua miséria e vergonha
Tinha 9 anos, mas me lembro, como se fosse ontem, da cobertura ao vivo num tosco televisor preto e branco de marca Telefunken. A gloriosa seleção canarinho de 1970, depois de ganhar todos os jogos, voltava tricampeã do México. Minha família assistia, emocionada, ao presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, receber a taça Jules Rimet das mãos do capitão Carlos Alberto. Com grande senso de mise-en-scène, o general se virou para a câmera e beijou o caneco, como se fosse seu.
Em vez de celebrar como todos, meu tio Bernardo, comunista de carteirinha, ficou num canto da sala, praguejando contra o futebol que alienava as massas e promovia a ditadura militar enquanto o povo era explorado e seus amigos, torturados.
Passados 40 anos e dez Copas, li no jornal The Guardian um artigo que certamente faria o tio Bernardo, que morreu de infarte durante a Copa da Itália em 90, gemer na cova. A Organização das Nações Unidas divulgou o ranking anual que qualifica os países segundo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e reúne dados sobre nível de educação, expectativa e condições de vida. São 182 países na lista, e a África do Sul (que está torrando R$ 8,5 bilhões com a Copa) ocupa o 129º lugar - 19 posições abaixo da miserável Faixa de Gaza.
DESALOJADOS À FORÇA
A ridícula discrepância entre o PIB e o IDH faz dos anfitriões sul-africanos campeões mundiais absolutos da desigualdade social. Eles são também os campeões mundiais em mortes violentas per capita. Os dados são chocantes até mesmo para nós, brasileiros, tão acostumados com estatísticas absurdas: 42,9% da população sul-africana ganha menos de R$ 3,50 por dia. A expectativa média de vida é de 49 anos - 13 anos menos do que quando o país ainda vivia sob o manto brutal do apartheid. Para construir estádios e esconder do mundo a vergonhosa miséria, milhares de favelados foram desalojados à força em Johannesburgo e Pretória e jogados em miseráveis acampamentos provisórios.
O tio Bernardo, que Deus o tenha, era um puta de um mala. Era mal-humorado, tacanho e tinha mau hálito. Mas hoje lembrei dele com carinho, pensando que existia muita verdade no seu jeito pedante de olhar para o mundo. Isso tudo dá mesmo muita raiva. Mas seu engano foi querer estragar a festa, levando tudo e a si mesmo muito a sério, sem reconhecer que, durante a Copa, o futebol, apesar de todos os absurdos da humanidade, é a coisa mais importante.
*HENRIQUE GOLDMAN, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br