De volta à Febem

Luiz Mendes se emociona ao voltar à Fundação Casa, de onde saiu há 41 anos

Fui contratado pela Ação Educativa para ir à Fundação Casa realizar uma pequena oficina de texto. Os meninos haviam dominado com facilidade os equipamentos de filmagem e tinham grandes ideias, mas havia dificuldades para expô-las por escrito.

Há sete anos, desde que saí da prisão, tento entrar na Fundação Casa com minhas oficinas. Acreditava ser ali o lugar em que meu trabalho fosse mais profícuo. Os meninos estão plásticos, moldando-se. Como esponjas, sugam a água macia da vida até o osso. Fui um deles. Conheço a linguagem, a dissimulação e suas técnicas todas de sobrevivência.

Rodrigo, coordenador da Ação Educativa, me buscou em casa e foi me orientando. Só ao atravessar os portões de ferro caiu a ficha. Fazia exatamente 41 anos que eu saíra de um lugar como aquele, com 18 anos e alguns meses. Foi um choque maior do que quando voltei à penitenciária para as oficinas. Não sabia se aguentaria, fiquei inseguro. E tinha que permanecer firme, os meninos me esperavam.

Portões enormes, grades para todo lado, ouriço dilacerante na muralha, tranca, pátio, quadra de futebol de salão... Nada a dever a uma penitenciária. Depois das barreiras, os rapazes. Foram entrando na sala em fila indiana, de mãos para trás, em silêncio, completamente dominados pela disciplina de ferro que lhes é imposta. Disseram-me que aqueles eram os garotos mais perigosos da fundação. Haviam participado de todas as rebeliões recentes. Era com esses mesmo que eu queria trabalhar.

Estava sob intensa emoção, e com receio de ser rejeitado. Comecei e logo entrei de sola. Contei de minha emoção de voltar ali com toda a sinceridade, fui me expondo.

Contei também toda minha trajetória até chegar e eles, mas a emoção foi pegando mesmo quando comparei meu tempo com o deles. A voz embargou, as lágrimas encheram os olhos e tive que me controlar algumas vezes. Havia grandes diferenças. Por exemplo, eles moram em 49 internos na unidade toda. Nós morávamos aos montes em cada cela. Boa parte dos funcionários, reparei, é de mulheres. No meu tempo era a Polícia Militar que tomava conta de nós. E nos dominavam espancando com seus cassetetes. Mas, na base, tudo era semelhante. Éramos frutos da mesma sociedade e tudo o que cerceia a liberdade é prisão.

Vai cair a ficha antes?
Por lá, há uma espécie de meritocracia, uma progressão de regime baseada no merecimento. Não sei se funciona direito, mas o discurso é interessante: andou na linha (andar na linha é parecer manso, sociável e bloquear a capacidade crítica?), interessou-se pelos cursos, dedicou-se? Então passa a um estágio com mais espaço e regalias. No último os rapazes frequentam escolas comuns, trabalham na rua e vão para casa aos fins de semana.

Ao fim de minha narrativa, perguntei: será que vocês vão ter que passar por tudo o que passei para aprender a conviver com os outros numa boa? Será que vão ter um futuro tão doloroso quanto foi meu passado? Será que vão ter que sofrer tanto quanto eu para aprender a viver com pouco dinheiro? Será que terão que experimentar toda dor, aflição e desespero que vivenciei para depois chegar à mesma conclusão que eu? Que não vale a pena? Sem me responder, abaixaram a cabeça para pensar. O silêncio falou por todos.

Entrei às 14h e sai às 18h. Dia seguinte foram mais quatro horas intensas. Saí com a alma engrandecida, embora não satisfeita. A maior certeza era a de que tenho muito a fazer ali. Foi uma das experiências mais gratificantes que já vivi. Os meninos me abraçaram fortemente, foi comovente.

Ao receber na cara o vento frio da rua, respirei fundo e senti que havia feito um bom trabalho. Dei tudo de mim e cravei fundo. Vi nos olhos dos garotos. Um dia vai cair a ficha para eles. Espero que o mais breve possível.

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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