Cristian Wariu: um guerreiro indígena do século XXI

por Dandara Fonseca

Criador do canal Wariu, o comunicador xavante usa a tecnologia para desmistificar preconceitos e estereótipos em torno dos povos indígenas

Guerreiro digital. É assim que lideranças indígenas apelidaram o xavante de 22 anos Cristian Wariu Tseremey'wa. Nascido no território Parabubure, na região do Vale do Araguaia, no Mato Grosso, o jovem usa a internet para desmistificar ideias preconceituosas e estereotipadas sobre os povos indígenas. Hoje, seu canal no YouTube, o Wariu, conta com 25 mil inscritos e suas publicações têm ganhado cada vez mais destaque nas redes sociais. "Já existe muito material sobre os povos indígenas, mas esse conteúdo não vai até essas pessoas", diz. "A minha função como comunicador é traduzir para essas linguagens mais jovens."

Filho de um líder indígena xavante, Cristian sempre viveu em cidades pequenas próximas às aldeias de seu povo e desde cedo teve que se colocar na função de comunicador. "Nos primeiros anos do Ensino Fundamental, eu tinha que explicar para as crianças, e às vezes até para os professores, que eu não era uma pessoa brava, que eu não praticava canibalismo, que eu não andava pelado em casa e que eu não recebia dinheiro da Funai." O audiovisual foi a forma que ele encontrou para desmistificar informações como essas a mais pessoas. Hoje, além da fotografia, o jovem apresenta os podcasts Voz Indígena e Copiô, Parente.  

Recentemente, além dos vídeos no YouTube, Cristian tem usado uma nova rede social para espalhar suas ideias: o TikTok. Em vídeos de 15 a 30 segundos, que alcançam mais de 25 mil curtidas no Twitter, ele fala sobre questões como diversidade dos povos, pertencimento e os termos pejorativos ligados aos indígenas. "Eu acredito que é um passo muito efetivo para o futuro da questão indígena ensinar essa geração mais nova, que estará futuramente em cargos de influência, quem somos nós e por que é importante quebrar esses preconceitos."

No papo com a Trip, o jovem xavante fala sobre o projeto "Guerreiros Digitais", que fornece capacitação para comunicadores de diversos povos originários, e diz o que é, para ele, ser indígena no século XXI: "Ser indígena hoje é se colocar em diversos espaços. Se as pessoas falam que somos preguiçosos, como é que contrariamos isso? Mostrando como somos esforçados em diversas áreas. Hoje, somos advogados, médicos, deputados federais, candidatos à vice-presidência."

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Trip. Como foi seu primeiro contato com o ativismo indígena?
Cristian Wariu. Eu sou filho de uma liderança indígena, meu pai atualmente é o presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso, mas já trabalha há muito tempo com questões focadas principalmente na Amazônia. Por isso, ele sempre trouxe muito material, conversou muito comigo e com meus outros dois irmãos sobre as questões indígenas. Então desde cedo tive muita noção do meu lugar dentro do movimento. Eu sempre comento que a gente já nasce no meio de uma luta, numa mentalidade de entender que temos que dar o retorno para as nossas comunidades, independente do que estamos desempenhando. No meu caso, estudando comunicação na Universidade de Brasília, dando um retorno para os povos e para os xavantes.

E foi assim que você decidiu que seguiria um futuro no ativismo? É engraçado porque o meu pai sempre se doou bastante para o movimento e trabalhar com os povos indígenas é muito complicado. Era visível como ser um representante o desgastava e, sendo seu filho mais velho, isso ficou muito perceptível. Em alguns momentos eu cheguei a pensar que não queria isso para a minha vida. E esse é um traço que acabei percebendo em muitos filhos de lideranças indígenas. Apesar de hoje mostrar todo o meu orgulho, toda essa forma de lidar com o contexto indígena e com a comunicação, nos meus 15, 16 anos eu cogitava realmente não entrar nessa vida. Mas tudo acabou me levando para ela e para esse momento.

Quais foram os principais fatores? Como eu disse, meu pai sempre me deixou muito a par da situação. Ele falava do meu lugar, me alertava quando era o único indígena nos espaços que frequentava, das pessoas me olharem diferente, de eu ter que me esforçar muito mais do que não indígenas para ter o meu lugar de igualdade. E na escola também foi muito perceptível essa função de comunicador. Nos primeiros anos do Ensino Fundamental, eu tinha que explicar para as crianças, e às vezes até para os professores, que eu não era uma pessoa brava, que eu não praticava canibalismo, que eu não andava pelado em casa e que eu não recebia dinheiro da Funai. Chegava em uma determinada página do livro de história e eu tinha que falar que algumas coisas escritas ali estavam equivocadas, representando indígenas da época colonial. Isso foi crescendo comigo conforme fui adentrando a sociedade não indígena.

E como surgiu o interesse pelo audiovisual? Meu pai, por ser uma liderança, já trazia computadores para casa. Eu mexo no Windows desde o 95 e tenho uma formação técnica em informática. Além disso, desde pequeno tive muita experiência com arte, com desenho. E aí no primeiro ano do Ensino Médio eu tive a oportunidade participar de um concurso de produção audiovisual, que daria um prêmio em dinheiro. A competição era entre as redes estaduais, municipais e particulares, e tinham até pessoas que cursavam audiovisual. E eu fui o vencedor da região do vale do Araguaia. A partir de então, comecei a me interessar realmente pela produção de conteúdo. 

Foi aí que surgiu a ideia de criar um canal no YouTube? Uma professora me incentivou a criar um canal nessa época, mas no Ensino Médio, com 16 anos, eu não conseguia nem pensar em criar um vídeo com uma produção boa. Aí em um belo dia de 2018, quando eu já estava em Brasília trabalhando como designer gráfico, surgiu um edital do antigo Ministério da Cultura, hoje Secretaria da Cultura, chamado "Juventude Vlogueira". Seu objetivo era fornecer incentivo e apoio a canais com intuito cultural veiculados gratuitamente na internet. Então eu pensei: o que pode ser mais cultural do que povos indígenas? Me inscrevi e, entre quase 900 inscrições, fui selecionado. Assim, consegui produzir o meu canal durante todo o período de 2018, que era o tempo de vigência do edital. No final do ano, eu era o youtuber que tinha mais inscritos.

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Você tem produzido muitos vídeos no TikTok e até brinca com o termo "tiktoker indígena". Como você começou nessa nova rede? Além da militância indígena ser muito complexa, produzir conteúdo em vídeo é um desafio. No YouTube, eu tinha que colocar o conteúdo sobre povos indígenas em 5, 10 minutos. E aí vem o TikTok, onde você tem 15, 30 segundos no máximo para falar sobre uma questão. A ideia de entrar nessa rede veio da vontade de alcançar cada vez mais pessoas, muitos jovens estão ali e querem realmente entender. Eu acredito que é um passo muito efetivo para o futuro da questão indígena ensinar essa geração mais nova, que estará futuramente em cargos de influência, quem somos nós verdadeiramente e por que é importante quebrar esses preconceitos. Por ser jovem, consigo conversar com esse público, que às vezes é meio difícil de lidar.

Quais são seus principais objetivos na internet? Meu conteúdo vem no sentido da desmistificação de preconceitos e de estereótipos enraizados dentro da cultura brasileira relacionados aos povos indígenas. A princípio, já existe muito material sobre sobre o assunto, mas esse conteúdo não é buscado, não chega até as pessoas. A minha função como comunicador é traduzir para essas linguagens mais jovens, do Tiktok, do YouTube, para alcançar certos objetivos. Aí vai da pessoa perceber que realmente ela está equivocada e querer entender mais.

Você sente que as pessoas estão mais abertas a entender e apoiar as questões indígenas? Hoje, tendo um conhecimento prévio da internet, vejo que depende muito da bolha na qual você está inserido. Se eu posto meu conteúdo na bolha que estou, as pessoas estão aptas a entender. Mas eu posso estar falando para um público que já concorda. Por isso às vezes eu tenho que adentrar outros espaços. Quando levo esse material para uma bolha extremamente preconceituosa, vejo que muita gente não está apta a entender. No Twitter, por exemplo, quando algo viraliza, é um Deus nos acuda. Porque chega gente realmente falando de questões que são muito mais complexas, como do pedágio, ou com ideias errôneas, como que eu preciso ter uma Hilux para ser indígena.

Você pode falar um pouco da questão do pedágio? Existe uma regra no Brasil que diz que qualquer empreendimento ou ação que cause um impacto direta ou indiretamente dentro de um território indígena tem que passar pela consulta prévia e ser informada aos povos. Caso o empreendimento seja aceito, os indígenas têm direito a um ressarcimento. Isso acontece porque há impactos sociais, ambientais, financeiros, de dispersão cultural, morte de animais por conta de acidentes, entre outros. No caso da pandemia, até de saúde, já que a contaminação fica mais próxima. O que acontece é que no Brasil esses empreendimentos, que são principalmente de rodovias, muitas vezes não passam pela consulta dos povos originários, sendo feitos de qualquer jeito e causando transtorno. E aí, se sentindo lesados, os povos acabam optando por fazer esse reembolso à mão própria, que seriam os pedágios. No fim, acaba não sendo culpa nem das pessoas que estão passando pelos pedágios, nem dos próprios indígenas que estão cobrando, mas sim do empreendimento. Mas muitas pessoas não querem entender e só falam que os índios estão cobrando pedágio porque querem grana.

E o estereótipo da Hilux? A Hilux é uma questão super errônea e até engraçada. As pessoas sempre falam desse carro que, na realidade, é uma viatura da saúde indígena, são viaturas do Estado, da Funai. E as pessoas, por nos verem andando com esses carrões, acham que somos os donos. Todo mundo sabe que a estrutura de uma estrada indígena é terrível para se andar, por isso não é possível usar uma ambulância. Mas vai querer fazer essas pessoas entenderem... Elas querem trazer essa narrativa estereotipada. Dá até para pra perceber um certo ódio em alguns casos.

Como você lida com esses ataques de ódio na internet? Meu modo de lidar é um pouco diferente porque eu já vivia essas questões desde a época da escola. Muitos dos discursos de ódio que vêm de um perfil falso na internet já foram falados na minha cara, olhando nos meus olhos. Já teve um professor de português que falou para que eu voltasse para aldeia, porque ali não era o meu lugar. Quando eu vejo alguém fazendo isso na internet, eu não ligo, sei que é besteira e não me sinto atingido. Às vezes têm comentários pertinentes, de pessoas que realmente aparentam não entender e querem saber mais, e eu explico. Mas dessas pessoas totalmente ignorantes eu não me importo em apagar o comentário porque elas não têm abertura para entender a questão indígena. Acredito que a cultura xavante me ajudou muito nisso também.

Por quê? Toda nossa tradição, desde criança, é voltada para a questão da resistência física e psicológica. Todo ritual xavante é uma preparação para a vida, para as dificuldades. E foi uma preparação para que eu conseguisse lidar com a internet também, que é um lugar que as pessoas consideram sem lei, que não ouvem. Esses comentários poderiam me derrubar, mas acho até engraçado.

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Para você, o que é ser um indígena do século XXI? O vídeo que fiz sobre esse tema foi um dos primeiros do canal e serviu como um desabafo sobre tudo o que eu iria abordar futuramente. Para mim, ser indígena hoje é se colocar nos espaços, não necessariamente só no digital, mas em diversos espaços. Se as pessoas falam que o indígena é preguiçoso, como é que a gente contraria isso? Mostrando como nós somos esforçados em diversas áreas. Hoje somos advogados, deputados federais, candidatos à vice-presidência. Precisamos realmente mostrar para todos que os indígenas do século XXI são advogados, médicos, pessoas que estão dando retorno para as suas comunidades, que não deixam suas raízes por não estarem em seus territórios. Em 500 anos, a população indígena tem aumentado e tem orgulho de ser indígena. É importante reforçar isso para os jovens, que estamos indo à luta e resistindo. Tudo isso é ser indígena no século XXI.

Como a fotografia e os podcasts chegaram na sua carreira? A fotografia entrou na minha vida porque eu precisava manusear uma câmera para filmar. Como eu estava trabalhando com registro, em algum momento eu clicava uma foto. E isso acabou imprimindo uma visão muito única, um timbre bem diferente. Já a relação do podcast é de consumo mesmo. Eu sempre acompanhei e, ano passado, comecei o "Voz Indígena" com um outro aluno de jornalismo da UNB, do povo Kambeba, da Amazônia, para falar das queimadas que ocorriam naquela época. E ele foi muito bem recebido. Fizemos alguns episódios tratando de questões bem complexas, como homossexualidade, pertencimento, que muitas vezes acabo deixando de lado porque as pessoas ainda nem entenderam o simples. A ideia era retomar o projeto esse ano, mas, por conta da Covid, tivemos que adiar. E aí no começo do ano fui chamado para trabalhar no Instituto Ambiental apresentando e editando o "Copiô Parente", que na época era um podcast distribuído por WhatsApp somente entre os parentes indígenas. 

Você está lançando agora o curso Guerreiros Digitais. Como surgiu a ideia? O curso é uma iniciativa da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), do Coletivo 105 e minha. Com o apoio da ONG TNC, o objetivo é fornecer capacitação para comunicadores indígenas de três estados da Amazônia legal: Mato Grosso, Pará e Amapá. A comunicação é uma deficiência do movimento indígena e a gente tem se articulado para ter uma resolução. É muito gratificante poder usar a minha experiência como comunicador digital, como guerreiro digital, para que esses outros jovens indígenas também desempenhem suas funções em seus estados e suas organizações.

Por que é tão importante que os indígenas ocupem os meios de comunicação? Muitas das informações errôneas que existem a respeito dos povos indígenas aconteceram por não serem indígenas falando sobre suas questões. Em toda a história do Brasil, nós não tivemos representatividade e somos vistos de forma estereotipada. A gente precisa falar da nossa própria vivência, desmistificar preconceitos e recontar quem verdadeiramente somos. É importante também lembrar que não somos um único povo, somos 300 povos divididos em um território continental. O ideal é que exista um representante de cada povo pra falar sobre a sua vivência. E é isso que buscamos. 

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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