Novos militantes indígenas

por Dandara Fonseca

Alice Pataxó, Tukumã Pataxó e Kaê Guajajara usam as redes sociais para quebrar estereótipos e ampliar o debate em torno das questões indígenas mais urgentes

Nas últimas décadas, a internet se mostrou uma ferramenta potente na expansão e divulgação de movimentos sociais. É no ambiente digital que os jovens se aprofundam nos debates e, muitas vezes, têm seu primeiro contato com pautas de lutas importantes. Recentemente, um grupo tem se apropriado de forma mais intensa desse espaço e o transformado em palco para seu ativismo: os indígenas. 

É cada vez maior o número de jovens indígenas que, no YouTube e nas redes sociais, tratam das reivindicações dos povos originários e apresentam a diversidade de tradições e culturas para o resto do Brasil. Um dos exemplos mais recentes é a movimentação em torno da medida da Justiça Federal que determinou, em plena pandemia, o despejo de uma aldeia Pataxó no sul da Bahia. Desde que a decisão foi tomada, as hashtags #LutaPataxo e #JustiçaPataxo tomaram conta das redes, reivindicando o direito do grupo às suas terras.  

Segundo dados do Censo do IBGE, em 2010, quase 900 mil indígenas vivem no Brasil (aproximadamente 0,4% da população), divididos entre 305 etnias. A Trip conversou com três jovens que têm usado suas vozes e seus trabalhos para ampliar o ativismo indígena.

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No dia a dia 

Moradora da Aldeia Craveiro, no sul da Bahia, Alice Pataxó começou a falar sobre questões indígenas nas redes sociais e, quando viu, seu perfil no Twitter reunia mais de 30 mil seguidores. "No começo era uma conta pessoal, um lugar para desabafar sobre as coisas que vivencio", diz a jovem de 19 anos. "Entendi que seria bom usar o aquele espaço para mostrar, pelo meu olhar, o que acontece na aldeia, principalmente porque muitas pessoas não tem contato com a nossa realidade".

A ativista e comunicadora conta que as questões tratadas por ela nas redes sociais nascem principalmente de suas vivências diárias. "No dia em que eu estou fazendo pintura, por exemplo, penso que muita gente não sabe quão importante e significativo  esse processo é, e acabam se utilizando disso sem entender a problemática", explica. No período da pandemia, a jovem buscou trazer, entre outras notícias, atualizações sobre a Covid-19 entre os povos originários. 

Uma das threads informativas de Alice que viralizou recentemente tratava sobre uma questão importante: a diversidade de fenótipos indígenas. "As pessoas ainda têm aquela ideia estereotipada de que o indígena é aquele de pele vermelha, cabelo preto bem liso e olhos puxados", explica. "A nossa questão de identidade não está associada a características físicas, mas sim ao pertencimento, à vivência." 

Há 3 meses, Alice lançou um canal no YouTube, o Nuhé, onde fala, entre outros assuntos, da história de seu povo e da romantização dos indígenas. "Fico feliz ao ver os números crescendo porque significa mais gente se preocupando em conhecer a realidade indígena e entender o nosso ponto de vista", diz. Apesar de vir de uma família de lideranças indígenas, foi no movimento estudantil que ela se aprofundou nessa luta e nas questões relacionadas ao seu povo.

Em julho, a jovem lançou o projeto “Literatura Indígena nas Mãos”, uma série de vídeos que apresenta as referências literárias indígenas para todos. "Com uns 10 anos eu li pela primeira vez um autor indígena e foi sensacional me enxergar naquelas páginas", conta ela, que desde pequena foi incentivada a ler por sua mãe, professora na aldeia onde nasceu. "Quero que as pessoas tenham a curiosidade de conhecer esses escritores e, consequentemente, não tenham como referência apenas o que é representado em Iracema", completa Alice, que hoje cursa humanidades na Universidade Federal do Sul da Bahia, a UFSB. 

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De forma leve 

Nascido na aldeia de Coroa Vermelha, extremo sul da Bahia, Tukumã Pataxó desde pequeno aprendeu sobre as questões ligadas ao ativismo de seu povo, entre elas a luta pela demarcação de terras. "Desde cedo vivenciamos isso diariamente e entendemos por que precisamos ter o nosso local e por que ele é tão sagrado pra gente", conta o jovem de 21 anos, que hoje cursa gastronomia na Universidade Federal da Bahia, a UFBA.

Apesar da influência das lideranças indígenas de família, foi na escola que o seu ativismo realmente tomou forma. "Na aldeia, eu estudei em um colégio trilíngue, que ensina o português, o inglês e a nossa língua nativa, o patxôhã", diz. "Essa experiência e a vivência dentro da comunidade me ajudaram muito na militância e na construção do ser indígena." Para ele, a escola foi um espaço importante para aprender a preservar sua cultura, sua língua, seus esportes e suas tradições. 

A militância de Tukumã chegou ao ambiente digital em novembro do ano passado, quando ele fez um post falando que ninguém deixa de ser indígena por estar vestido com roupas consideradas "comuns". "Eu vi que a publicação teve muita repercussão e passei a fazer postagens diariamente nas redes sociais", conta ele, que em menos de um ano ganhou mais de 20 mil seguidores no Instagram. Para levar sua militância aos jovens, ele usa ferramentas como os vídeos do TikTok, que têm uma pitada de humor e ironia. 

"Eu pego aqueles assuntos sérios, como termos pejorativos relacionados aos indígenas, e transformo em algo mais dinâmico", explica. "Dessa forma, acaba entrando mais no entendimento do jovem, já que muitos não têm interesse naquela discussão complicada", conta. Um de seus vídeos, em que ele e seus amigos aparecem com vestimentas típicas de seus povos, foi visto mais de um milhão de vezes em um única dia e já soma mais de 100 mil curtidas no Twitter. "Essa visibilidade ajudou muito. Chegamos falando sobre a causa indígena em lugares que a gente nem imaginava." 

Além das redes sociais, Tukumã é atualmente um dos colaboradores do Mídia Índia, projeto em que indígenas de diferentes etnias escrevem e divulgam conteúdos para informar a sociedade e abrir debates importantes para sua luta. "É muito importante termos um meio de comunicação idealizado por indígenas e falando sobre indígenas", diz. "Precisamos mostrar o que os diferentes povos estão passando, o que já conquistaram e o que estão lutando para conquistar", completa. 

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Tá no som 

A jornada de Kaê Guajajara no ativismo indígena foi um pouco diferente. Antes de começar a carreira como cantora, ela usava as redes sociais para escrever sobre assuntos como a demarcação de terras, que faz parte de sua vida desde a infância. "Eu nasci em Mirinzal, no Maranhão, em uma terra indígena não demarcada. Lá foi o último lugar onde a minha família parou depois muitos processos de violência, que ainda enfrentam principalmente por parte dos madeireiros", conta. Por esses e outros problemas, quando ainda era criança, seus pais decidiram se mudar para o Rio de Janeiro. 

Foi no Complexo da Maré, por meio de projetos sociais, que a jovem de 26 anos teve mais contato com as artes e a música. Lá, ela fundou um grupo de rap "Crônicos", que denunciava nas letras as violências vividas na comunidade. Ao seguir carreira solo, pensou em fugir das questões indígenas em seu trabalho, mas logo percebeu que sua arte poderia fazer alguma diferença. "Foi quando comecei a pensar e escrever sobre todas as violências sofri como mulher indígena no contexto urbano", diz. 

A partir daí, Kaê passou a usar as redes sociais como um espaço para compartilhar seus trabalhos e aprofundar as discussões presentes nas suas músicas. "Ao invés de ficar discutindo com várias pessoas que não têm vergonha de mostrar que são racistas, eu falo das questões indígenas nas minhas letras. Assim, eu consigo um diálogo", conta. "As pessoas chegam no meu Instagram para saber quem é essa índia que está cantando rap e funk, e acabam tendo uma aula."   

A artista traça objetivos diferentes em cada um de seus trabalhos. Em um momento, ela quer conscientizar as pessoas sobre as vivências indígenas, convidando-as, de forma educativa, a entender sobre sua cultura. Em outro, direciona sua atenção aos seus parentes, trazendo acolhimento através de suas músicas. "Eu não posso parar a minha vida para educar o branco. Então tento manter um equilíbrio entre oferecer amor e clamar por justiça", explica.

Novas armas 

Ouvir que índio não pode ter celular ou que só devem andar nus e pintados são algumas das afirmações preconceituosas e estereotipadas que os indígenas são obrigados a ouvir quase todos os dias, seja pessoalmente ou nas redes sociais. "Esses dias eu estava na rua, comendo com a minha família, e alguém disse em tom de espanto: 'Nossa, mas uma índia comendo hambúrguer?'", conta Kaê. "As pessoas acreditam que nós somos do passado. Elas não conseguem assimilar o que estamos fazendo aqui e agora."

Comentários como esse se multiplicam quando falamos de indígenas que vivem em áreas urbanas – segundo o IBGE, 36,2% vivem longe das aldeias onde nasceram. "Os parentes que estão na aldeia podem até ter um contato com um não-indígena, mas não é o tempo todo como nós, que estamos na cidade", explica a cantora, que vive no Rio de Janeiro e se prepara para lançar um novo EP ainda esse ano. Tukumã viveu esse baque aos 18 anos, quando deixou sua aldeia no sul da Bahia para morar na capital, Salvador. "Sair dali, onde está sua família e sua cultura, e ir para um lugar com uma vivência totalmente diferente, como a cidade grande, afeta muito a questão do ser indígena. É um choque de realidade", conta.

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Apesar dos estereótipos reproduzidos por aí, Alice acredita que há jovens dispostos a aprender e entender sobre a cultura indígena e mudar algumas de suas atitudes.  "Muitas vezes, a pessoa não tem acesso à nossa realidade e acreditam que temos a obrigação de ficar no passado, que não podemos nos adaptar à tecnologia. Por isso, procuro sempre conversar", diz. Para ela, ter uma visão diferente sobre questões culturais, históricas e espirituais é uma das razões pelas quais muita gente não entende seus posicionamentos. "É direito delas, mas também é um direito nosso não deixar que a nossa cultura e que nossos fazeres se dissolvam." Alice acredita que o diálogo é também uma maneira de encontrar semelhanças. "Os jovens acham que, por sermos indígenas, não lidamos com questões como ansiedade, dúvidas sobre o que queremos ser e o medo de não se tornar ninguém", diz. "Na verdade, todos nós temos esses sentimentos, apesar de não serem alimentados pela nossa sociedade."

Para Tukumã, é imprescindível que a maioria dos povos originários ocupem a internet para falar de suas realidades e reivindicações. "A maior parte das pessoas conhecem os indígenas pelos livros didáticos, que contam a nossa história no ano de 1500", diz. Ele acredita que essas ferramentas são importantes para mostrar que eles não são os índios que as pessoas se referem de forma pejorativa, como seres que pararam no tempo. Alice concorda: "Estamos formando novas lideranças, com outras vivências e novas formas de lutar. Hoje, usamos muito como arma a caneta e os celulares, e isso é muito importante."

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