Corpo, a última fronteira

por Ronaldo Lemos
Trip #242

A fusão entre corpo e mídias, algo há poucos anos concebido apenas como ficção científica, soa hoje quase como natural, para não dizer inevitável

O grande teórico e humanista Marshall McLuhan costumava dizer que as mídias nada mais são do que extensões dos sentidos humanos. É uma pena que McLuhan não tenha vivido para ver a disseminação da internet a partir da década de 90. E, sobretudo, para presenciar a forma como as mídias e o corpo estão se integrando atualmente.

O corpo humano tornou-se a fronteira final. A fusão entre corpo e mídias, algo há poucos anos concebido apenas como ficção científica, soa hoje quase como natural, para não dizer inevitável. Um bom exemplo é o recém-lançado relógio da Apple. A recepção dele foi em sua maioria de desapontamento. Até as ações da Apple caíram logo após o lançamento do aparelho. No entanto, olhando com mais cuidado, poucas foram as matérias que focaram no aspecto mais interessante do aparelho, sua integração com o Apple Health. Trata-se do aplicativo de saúde da Apple, que funciona como um coletor permanente de dados de saúde sobre o usuário. Ele tem a capacidade de monitorar de forma constante informações como batimentos cardíacos, consumo calórico, atividade física, pressão sanguínea, peso, colesterol e outras funções. Isso é só o começo. O aplicativo está pronto para coletar não só informações fisiológicas, mas também para servir de plataforma para pesquisas sobre a saúde mental dos usuários.

O lado positivo é que isso abre uma nova e incrível fronteira para as pesquisas médicas com seres humanos. Hoje elas são difíceis e caras de serem realizadas. Grande parte delas trabalha com amostras pequenas de pessoas, o que faz com que os dados obtidos tenham sua precisão limitada. No entanto, com a integração crescente da tecnologia aos nossos corpos (da qual o relógio da Apple é só mais um passo), pesquisas médicas poderão ser realizadas com milhões de pessoas simultaneamente. 

Para portadores de doenças crônicas, físicas e mentais, isso é uma excelente notícia. 

Isso ficou claro com o lançamento do chamado Apple Research Kit. Trata-se de uma plataforma aberta que permite a profissionais de saúde lançarem pesquisas por meio dos aparelhos da Apple. As expectativas em torno do sistema são altas. Executivos da empresa disseram que ele pode revolucionar a pesquisa com relação a doenças como câncer, bem como acelerar o desenvolvimento de novos remédios.

RATO DE LABORATÓRIO 

O lado negativo, no entanto, vai ser avaliar quais são os impactos éticos e para a privacidade. Pesquisas com seres humanos precisam observar uma série de regras. Isso é salutar e desejável. Em última análise, são esses princípios éticos que resguardam a dignidade humana e nos protegem de abusos como aqueles praticados com animais de laboratório. 

Já a questão da privacidade é ainda mais complexa. Dados médicos são considerados legalmente como "sensíveis" e são sujeitos a proteções especiais e restrições com respeito a sua divulgação e compartilhamento. 

Em face desses dilemas, uma coisa é certa. Estamos no momento em que a tecnologia e o corpo humano começam a se fundir em escala massiva. Vai ser interessante acompanhar essa relação. Quando corpo e tecnologia se confundem, é o corpo que se torna uma extensão das mídias.

*Ronaldo Lemos, 38, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e apresenta o programa Navegador na Globonews. Seu Twitter é @lemos_ronaldo

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