Fafá de Belém e Renan Calheiros falam sobre seus tempos de ativista. “Se fosse naquele período eu estaria, sim, nestes protestos”, diz o senador sobre petição que pede seu impeachment
Nos anos 80, quando a ditadura já ia mal das pernas, uma galera xingou muito (e não foi no Twitter) para pressionar pelo fim do regime militar no Brasil. E lá estavam estes dois, esgoelando-se em comícios das Diretas Já, com discursos e decotes libertários, ou em Brasília, uma cria do marxismo-leninismo que metia dedos na cara para denunciar a “incubadeira de escândalos” no Congresso.
A cantora Fafá de Belém e o presidente do Senado, Renan Calheiros, falam à Trip sobre seus tempos de ativista. “Se fosse naquele período eu estaria, sim, nestes protestos”, diz o senador, sobre os protestos que correm a internet pedindo o seu impeachment.
Musa das Diretas
Fafá de Belém soltava a voz, a pomba e a franga nas Diretas Já. Chamava atenção com seus penteados, seus decotes, suas interpretações arrebatadoras do “Hino Nacional” nos comícios. Calcula ter subido em 47 palanques pelo país afora (“fui de jegue, de bicicleta, pagava passagem de avião”). Sua marca era liberar uma pomba branca, geralmente comprada do próprio bolso no Mercado de Pinheiros, no final dos atos políticos. Entre 1983, e 1984, ao se juntar às milhares de pessoas para pedir eleições diretas num Brasil com duas décadas de ditadura nas costas, virou a “musa das Diretas”.
O título foi coisa da cabeça do jornalista Augusto Nunes, conta Fafá três décadas depois, por telefone. E ela estava mesmo em todas. Segundo a cantora, o ex-presidente Lula, a ex-primeira dama Marisa, o deputado petista José Genoino e o cartunista Henfil (quem lhe sugeriu a ideia de soltar “as pombas da liberdade”) faziam parte da turma que se reuniu em seu apartamento na rua Haddock Lobo, nos Jardins, no dia 25 de janeiro de 1984. Caminharam juntos de lá até o grande ato da praça da Sé. “Naquela altura não tinha cachê, nada. Tinha uma causa. E os artistas eram uma ponte.”
A paraense cresceu “ouvindo o pau comendo em casa”, com as agitadas discussões políticas entre a família do pai (“anarquista”) e da mãe (filha de uma família de políticos poderosos na região). Tinha sete anos e morava em São Paulo quando os militares chegaram ao poder em 1964. “Vi as tropas tomarem a cidade. Morava na praça perto da Assembleia Legislativa e estava esperando um amigo do papai, comunista, atravessar o viaduto Maria Paula.”
No ano seguinte, a família se mudou de volta para Belém, “e a guerrilha do Araguaia era bem próxima de lá”. Com vinte e poucos anos, mais uma vez em São Paulo, envolveu-se com “atividades subversivas”, no dialeto milico. Foi tachada de “pé frio” por “articulações de direita”. Passou dois anos sem trabalhar direito. Recebia telefonemas assustadores com ameças de sequestro contra sua filha Mariana, então com quatro anos (às vezes, a garota era embrulhada num lençol, colocada num carro e despachada para longe, “para despistar”).
"Fui de jegue, de bicicleta, pagava passagem de avião"
Hoje, Fafá se considera amiga dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (mais) e Lula (menos). Também se diz próxima de dois presidenciáveis, o senador Aécio Neves (PSDB) e o governador Eduardo Campos (PSB) - que para ela são “Aecinho” e “Dudu”, os eternos garotões nos anos 80, ainda na sombra dos avôs Tancredo Neves (morto 39 dias após ser internado na véspera da posse como presidente, em 1985) e Miguel Arraes (ex-governador de Pernambuco).
As causas atuais pouco a comovem. Ela levou a filha para ver os jovens que foram às ruas pedir o impeachment de Fernando Collor, em 1992 (o ex-presidente voltou à vida política em 2007 e foi parar no Senado, onde é hoje colega do ex-cara pintada Lindberg Farias). “Olha, meu amor, adoraria que alguma coisa me tirasse a sério [de casa]”, diz a musa das Diretas Já.
Mandacaru Atômico
Bem antes de virar o tipo de pessoa em quem jogaria tomates no passado, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) era um cabra cabeludo envolvido numa tal de Viração, “facção do movimento estudantil que tinha como referência teórica o marxismo-leninismo”.
Trinta e cinco anos se passaram e, com quilos a mais e cabelo de menos, ele virou alvo de passeatas e de um abaixo-assinado virtual com 1,6 milhão de assinaturas. A turba pede (até agora em vão) seu impeachment da presidência do Senado. “Se fosse naquele período eu estaria, sim, nestes protestos”, diz o político alagoano que, em 2007, renunciou ao mesmo posto para não ser cassado.
Ele foi acusado, na época, de ter despesas pessoais pagas por um lobista que defendia os interesses de uma empreiteira – uma dessas faturas cobria a pensão da jornalista Mônica Veloso, mãe de uma filha sua fora do casamento (depois do escândalo, Mônica posou para a Playboy e lançou o livro O poder que seduz para contar sua versão da história de amor com o senador, que gostava de lhe cantarolar Eu sei que vou te amar, segundo a ex-amante).
Antes disso tudo acontecer, contudo, Renan foi um dos jovens alagoanos que tentavam derrubar o status quo (como define assessor próximo, “um comunistaço”). “Naquele tempo, a juventude, a militância política, era 100% de esquerda”, conta o senador por e-mail.
Nos anos 70, o estudante de Direito elegeu-se presidente do Diretório Acadêmico da área de Ciências Humanas e Social da Ufal (Universidade Federal da Alagoas). Daí para o Congresso foi um pulo de carniça. Renan foi escolhido entre os estudantes de seu Estado para disputar as eleições. Como era 1978, e a ditadura ainda não tinha pedido arrego, candidatou-se pela opção viável à época: o MDB (antepassado do PMDB e único partido com concessão para existir, além do governista Arena). Virou deputado estadual aos 23 anos. “Era a primeira vez que os movimentos sociais e estudantis largavam as intermináveis noitadas de embates retóricos descompromissados e lançavam seus quadros para a difícil disputa eleitoral. Subitamente deixaram de me chamar de 'comunista'. Era 'excelência' pra cá e pra lá. À época aquele grupo de estudantes que se aventurou no mandato foi batizado de as 'novas excelências'.”
No livro Contadores de balela, editado em 1983, a “nova excelência” agrupou seus primeiros discursos e projetos de lei apresentados no Congresso (foi eleito deputado federal em 1982). O prefácio é do colega Ulysses Guimarães, um dos fundadores do PMDB – a sigla foi criada em 1980, um ano após a anistia reabrir as portas para o pluripartidarismo. E essa “nova excelência”, dizia Ulysses, morto em 1992, possuía uma “virtude indispensável ao homem público: coragem. Não tem medo dos poderosos do dinheiro, dos facínoras da violência, dos aproveitadores da corrupção”.
“Se fosse naquele período eu estaria, sim, nestes protestos”
Na tribuna, abraçava causas como eleições diretas e União Nacional dos Estudantes. “Atuei muito na entidade até porque meu irmão, Renildo Calheiros, e Aldo Rebelo, meu dileto amigo [e atual ministro do Esporte], foram presidentes”, diz sobre a UNE. Posava para fotos com silhueta mais longilínea (mas bochechas já salientes), de camisa branca para dentro da calça jeans afivelada com cinto preto. Num dos discursos, bradou: “Mais de um escândalo por mês. E estes são os que chegaram ao conhecimento da opinião pública, porque acabaram estourando, de tão escabrosos que eram. E os que estão para vir à tona? Como andará a incubadeira de escândalos nesses bastidores do arbítrio, da corrupção, do suborno, do tráfico de influências?”.
De lá pra cá, Renan se aliou a todos os presidentes pós-ditadura militar. Primeiro foi José Sarney, colega no PMDB. Do conterrâneo Fernando Collor, a quem antes chamava de “príncipe herdeiro da corrupção”, virou líder do governo na Câmara dos Deputados (apoiou seu impeachment em seguida). Dirigiu uma subsidiária da Petrobras no governo Itamar Franco. Foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. E, enfim, presidente do Senado na era Lula e Dilma Rousseff, apelidado “Mandacaru” pelos colegas, em homenagem a um tipo de cacto de superfície grossa e espinhenta.