Este psicanalista rodou meio mundo antes de se apaixonar pelo Brasil
Doutor Calligaris não é um intelectual de gabinete. Nascido em Milão, em 1948, este psicanalista de 54 anos rodou meio mundo antes de aterrissar — e se apaixonar — pelo Brasil. Viajante inveterado, Contardo Calligaris transita com igual desenvoltura pelas ideias, que expõe em comentados artigos na Folha de S.Paulo. Também é autor dos livros Hello Brasil! (Escuta, 1992) e Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996). O comportamento humano, as relações homem /mulher, a guerra no Oriente Médio e a cândida violência brasileira são temas que ele visita com o mesmo interesse com que morou em Londres, Genebra, Paris, Nova York e São Paulo. Nas duas últimas, fixou residência.
A grande viagem da vida de Contardo começou aos 17, quando fugiu de casa para morar em Londres. Na capital inglesa lavou pratos, vendeu cashmere nas ruas e distribuiu folhetos de boates de striptease. Voltou suavemente obrigado pelo pai, mas não se sentia mais em casa na Itália. Em pouco tempo, deixava de lado os jobs que fazia como fotojornalista e tradutor de romances policiais para estudar filosofia na Suíça e depois psicanálise na França. O exílio sem volta incluiu viagens lisérgicas para Índia e Nepal nos anos 60, sexo livre e militância na Paris de maio de 68 e a feroz contracultura norte-americana dos anos 70.
No meio do caminho, aprendeu cinco línguas, passou por três casamentos, desfrutou da amizade de Roland Barthes, Jacques Lacan e Italo Calvino e sofreu a angústia de não pertencer a lugar nenhum. “Viajar deveria ser proibido”, diz ele, surpreendentemente. “Produz uma divisão que não sara nunca.” Apenas uma das aparentes contradições de seu pensamento inquieto — como a que juntou no mesmo sujeito o gosto pelo diálogo e a recusa ao pacifismo. “Quando os aliados bombardeavam Milão na Segunda Guerra, meu pai, que era antifascista, pedia que as bombas caíssem”, conta. “Acho que muitas pessoas no Iraque pedem para elas caírem.”
Em 86, depois de uma palestra em Porto Alegre, conheceu a também psicóloga Eliana dos Reis, uma gaúcha intensa, “daquelas que têm a faca na bota”, como ele gosta de dizer. A paixão à primeira vista foi registrada em foto. Juntaram escovas de dentes e filhos de outros casamentos. Na entrevista a seguir, colocamos o analista no divã.
Dizem que brasileiro é bom de cama. Por quê?
Quando você fala em “sexualidade do brasileiro”, está se referindo a uma curiosa confluência entre o que acontece na vida individual e na vida dos povos. O Brasil foi o maior sistema escravagista do mundo, e a gente se pergunta se isso acabou direito. O fato de “nós”, no caso os brasileiros, sermos sensuais, ou sexuais mesmo, tem a ver com a permanência dessas relações de domínio escravagista — que é o domínio do corpo, o “faço com o seu corpo o que me der na telha”. Esse sadomasoquismo talvez seja a dinâmica fundamental de qualquer excitação sexual. E uma das razões pelas quais há uma dificuldade de se conciliar sexo e carinho.
Por que é difícil conciliar sexo e carinho?
É possível ter carinho pela pessoa com quem a gente transa e transar com a pessoa por quem sentimos carinho. Mas em uma alternância. O sexo não é o momento do carinho. Quando as relações se tornam totalmente carinhosas e as pessoas começam a falar como bebês, daqui a pouco somos o Mickey e a Minnie e vamos dormir com o pijaminha da Disney. Pode ser legal, mas aí a gente vai acabar não transando mais. Por isso que um bom casal é um casal que briga.
Um bom casal é um casal que briga?!
Eu não acho que as relações “apaziguadas” sejam as melhores. Nem que seja grande problema, num casal, de vez em quando voarem uns pratos. É a briga que permite o sexo. Não que você precise sair brigando para depois transar. Quero dizer que a briga serve para quebrar o nhenhenhém. Porque o sexo implica uma certa distância.
E a idéia muito difundida em revistas femininas de que, com o tempo, é normal o relacionamento esfriar e sobrar só o “companheirismo”?
Para mim é mais uma desculpa que outra coisa. Me parece contrário a tudo o que constato, pois, com poucas exceções, somos bichos extremamente apaixonados pela repetição. Nossa regra geral é a mesmice. Então não vejo por que a mesmice seria broxante. Minha idéia é que o interesse sexual se perde por preguiça.
Preguiça de transar?
É preciso esforço para manter a vida sexual. O sexo é um trabalho. Não no sentido de [aponta para o relógio] “ah, agora vou para o escritório”. Mas, se você não mantém fantasias sexuais andando na sua cabeça, num dado momento a atividade sexual morre. Nossa sexualidade não tem nada de natural, é ligada a fantasias e só funciona com elas. A quantidade de casais que param de transar e se queixam como se fosse “eu deveria tomar Viagra” é imensa. Mas o primeiro Viagra é pensar em sexo.
É mais fácil viver sozinho ou a dois?
[Longa pausa] É difícil responder por causa desse “mais fácil”. Acho que cada um deve descobrir se, para ele ou para ela, é mais agradável viver sozinho ou a dois. Qualquer escolha é legítima, o problema é que todas têm um custo. Eu acabo de pedir um Guaraná Diet e poderia envenenar a bebida com o lamento da Coca que não pedi. A maior lição da psicanálise é esta: qualquer desejo implica perdas.
Em outro artigo você afirma que as pessoas andam “tão preocupadas em preservar suas liberdades individuais que acabam por preservar a sua solidão”. É verdade?
Eu acho que, em vez de fugir dos relacionamentos, seria menos custoso inventar maneiras de convivência em que a gente pudesse pagar um pouco menos do que a solidão. A gente tem muito a inventar na maneira de um casal conviver e negociar a individualidade um do outro. Defendo as uniões duradouras, porque são mais interessantes. Acho que muitas separações — mas, cuidado, não todas, longe disso — são efeito de preguiças diversas. Então, valorizo os esforços dos que tentam ficar juntos.
Ainda sobre relacionamentos, você sempre pergunta: “Qual é a melhor viagem, visitar as capitais européias num ‘tour’ de 15 dias ou passar duas semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco?”. O que quer dizer?
Quero dizer que a diversidade das relações é dramaticamente desinteressante. A grande maioria das pessoas vive uma série de monogamias. São poucas as que preferem uma vida de quinze capitais em quinze dias. E a verdade é que isso é muito pouco interessante. Porque não existe nada de mais interessante no mundo do que as pessoas. E, se você inventa um sistema de relações que na verdade é um sistema de não-rela-ções, se priva do que há de melhor na vida.
Mas não há um certo prazer na variedade?
Não é a variedade, mas o desconhecido que tem valor erótico. Se você está disposto a ter uma transa num canto escuro de um parque com alguém que nunca viu, isso é uma fantasia sexual do caramba. Só não esqueça a camisinha. Mas ser galinha e ter um flerte com uma conversa babaca a cada dois dias não tem interesse nenhum, nem sexual, nem individual. Entendo perfeitamente uma atividade sexual de sauna, de clube de swing, mas essa do “eu flerto, bato um papinho, dou dois beijos e passo para outra” não tem nenhuma graça.
Fidelidade é essencial num relacionamento?
[Pensa] Não tenho valores absolutos sobre isso. Mas existe a ideologia, muito cool, de que “tudo bem, nós somos liberados, transa com quem você quiser e eu também”. Só que, na maioria dos casos, os dois vão sofrer uma barbaridade com isso: vão ter ciúmes, morder as unhas, se odiar e acabar numa merda. Na grandíssima maioria dos casos é uma mentira.
"Minha idéia é que o interesse sexual se perde por preguiça"
Existe uma apologia do não-compromisso?
É possível. O que me espanta na geração dos meus filhos, que têm entre 19 e 24 anos, é que eles se engajam em relações importantes, que duram anos, mas só são possíveis numa espécie de negação absoluta. É evidente que estão construindo uma vida a dois, monogâmica, mas existe uma atuação teatral do não-compromisso, uma negação da retórica do amor. Agora, eles praticam a fala de nenê. Nê-nê-nê! [Gargalhadas] Isso é uma praga!
Que outras diferenças você vê?
Outra coisa que noto é que eles não parecem tão interessados pelo sexo quanto a minha geração. A liberação sexual nos anos 60 era um tema ideológico. Era uma obrigação transar em grupo, trocar de parceiro na cama... E acho, mas pode ser só impressão, que a atividade fantasmática sexual é pouco presente nos jovens de 20 anos agora. Isso pode até ser positivo, porque diminui as expectativas... Mas, não sei. Acho menos divertido.
Por que as novas gerações estariam menos interessadas em sexo?
A velha idéia é de que a proibição fazia o “sal” da coisa. E uma vez que a sexualidade foi liberada... Mas não acredito nisso. A hipótese que levanto é que a nova geração erotiza menos as relações de domínio. E, portanto, falta o elemento que era para as gerações precedentes uma das fontes essenciais da excitação. Quando falo “erotizar as formas de domínio”, não significa nada de espantoso. É aquele casal que se adora e na hora da transa ele diz “toma aqui, sua puta!” e os dois gozam freneticamente. A pergunta é: as novas gerações são capazes de inventar uma sexualidade diferente? É possível. Mas esse déficit é visível na indústria da “mascarada sadomasoquista” e nos filmes pornôs, em que um strip ou uma transa não interessam mais — o negócio é “a puta violentada pelo policial”. Também há um fundo sadomasoquista no movimento gótico, no punk, nos vampiros, na cultura da tatuagem e do piercing.
A internet atrapalha as relações humanas?
Pelo contrário. A internet é um instrumento incrível de reativação das fantasias. As pessoas se encontram pra caramba graças a ela. Se eu tivesse como fantasia erótica transar de garrafa a 12 metros de profundidade com um buraco na minha roupa de borracha, onde ia achar alguém que gostasse da mesma coisa? Um senhor de meia-idade, casado, cuja grande emoção sexual é se vestir de mulher e se masturbar olhando no espelho poderia passar a vida toda convencido de que é uma monstruosidade, um freak. A internet permitiu a milhões de pessoas assim descobrirem que não eram as únicas.
Oito normas de conduta cotidiana para o cidadão moderno *publicado originalmente no suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo, de 13/10/2002. |