Condomínio da compulsão

por Kátia Lessa
Trip #179

Em um prédio de SP, reúnem-se 8 grupos de pessoas que pesaram a mão na busca pelo prazer

Convidados do casamento começam a chegar rapidamente, na mesma velocidade com que as bitucas se acumulam na calçada. Duas mulheres de longo entram na igreja, quando uma repara na placa com os horários e cochicha:

– Olha isso! Aqui tem reunião dos drogados.
– Deus me livre. Tem reunião de bêbado, de gordo, de fumante, de tudo.
– Tem até devedores anônimos!
– Acho que preciso dessa. [Risos.]

Há outros lugares, igualmente ligados a igrejas, que também aglutinam grupos assim, formando uma espécie de “condomínio da compulsão”. Para tentar entender o que acontece quando pessoas ligadas a essas diferentes terapias coletivas se trombam em escadas, corredores e outras áreas comuns, fomos lá, repórter e ilustrador, passar um sábado no prédio. Ficamos oito horas de sala em sala e passamos por reuniões de cinco grupos, vivenciando pilhas de desabafos de gente que perdeu a mão nas mais diferentes manifestações de prazer.

Em meio a esse liquidificador emocional, primeiro encaramos um questionamento ético. Como o nome dos grupos indica, o anonimato é essencial a suas atividades. Para seguir adiante, decidimos não identificar o endereço das reuniões nem os nomes dos participantes. E manter a proposta de divulgar o trabalho sério e efetivo realizado nesses locais – fundamental para pessoas que precisam urgentemente de ajuda, que nem sempre sabem a quem recorrer e que muitas vezes enfrentam preconceitos como os descritos acima.

Depois da questão ética, surgiu outra dúvida: será que não deveríamos frequentar as reuniões também? Afinal, muitos dos problemas relatados, especialmente no encontro dos neuróticos, eram muito mais próximos da nossa realidade do que imaginávamos no começo do dia. Segue a fita.

14h – Super-homem
Os bancos da igreja estavam vazios. Por lá, só os funcionários de uma empresa de decoração. Caixas e caixas de lírios e velas. Dia de casamento. Um corredor na lateral da sacristia leva até os fundos, a um caminho que desemboca na rua de trás, em uma escada curta. Logo na entrada, uma placa lista todos os dias e horários das reuniões. As quatro salas ficam no segundo andar e, no mesmo piso, à esquerda, uma folha sulfite plastificada indica a área onde acontecem os batismos. Tudo deserto. Resolvemos então aproveitar o sol sem-vergonha que batia na calçada à espera de alguma ação. O segurança responsável por abrir e fechar os portões rondava por ali.

– Senhor, por favor! É aqui que acontecem as reuniões?
– É sim. Daqui a pouco já começa, todo sábado fica cheio. A primeira é a do Neuróticos. A senhora tá precisando de qual?
– É minha primeira vez, não conheço muito bem.
– Fica tranquila, já já os neuróticos chegam, fica tranquila.

O discurso do padre vinha da sala de batismo. Enquanto isso, a sala do Comedores Compulsivos começava a lotar. Pela janelinha, percebemos um problema delicado

Pessoas bem-arrumadas e sorridentes começam a chegar. Uma delas empurra um carrinho de bebê. Iam para um batismo.

Minutos depois, um homem de lá seus 40 anos, casaco enorme amarrado nos ombros, aberto como uma capa, sobe as escadas, “sobrevoando”. Em seguida, passa uma moça mais jovem carregando um saquinho plástico com rolos de papel higiênico. Outra mata um cigarro com quatro tragadas, bastante encurvada, e inaugura o mar de bitucas que se formaria. Ajeita os cabelos e toma o mesmo rumo.

– Mais batismo, aposto.
– Não sei não. Vou lá ver.

A porta da sala estava fechada, e pela janelinha de vidro vejo eles, o super-homem e mais alguns sentados em carteiras escolares. Quietos, escutavam o desabafo de um colega, quando resolvemos entrar. A orientadora, que também faz parte do grupo, nos recebeu com muita educação.

O encontro segue um ritual: a pessoa se apresenta, fala por quatro minutos sobre o descontrole emocional que tenta domar, tem mais um minuto de lambuja e se cala. Ninguém comenta o caso de ninguém. O tratamento acontece através do que eles chamam de terapia do espelho. Ao ouvir a história de outra pessoa, você identifica e aprende a vigiar seu próprio comportamento destrutivo. E assim foi por uma hora, sem intervalo. Raivas, angústias, euforias, baixa autoestima.

As emoções começam a ser reviradas, e toda aquela gente parece mais próxima do que antes. A reunião já estava quase acabando, quando um sujeito entra na sala. Tênis de futebol de salão, camiseta surrada, cabelos desgrenhados e saco plástico cheio de roupas emboladas. Usava ainda um tampão no ouvido e falava em ritmo acelerado sobre como curou sua depressão tirando o tempero do arroz. De mãos dadas fizemos uma oração de encerramento. Fora da sala, decidimos fazer o teste para reconhecer as características do neuróticos.

Cinco alcoólicos batiam papo com três membros do narcóticos. Dois deles frequentavam ambos os grupos. os dramas contados pipocavam na minha cabeça

– E aí? São 18 perguntas. Concordei com quatro. Quanto deu o seu?
– Tô com vergonha, deu muito mais.
– Acho que tô bem. Lê aí o resultado.
– Lá vai: “Se você respondeu sim a qualquer uma das perguntas acima, é provável que você precise de ajuda. Se você respondeu sim a três ou mais perguntas, então é quase certo que precise de ajuda. Fonte: Journal of Mental Health”.

15h30 – Maquiagem, quentão e paçoca
Cada integrante do Neuróticos toma seu rumo, sem contato algum com os demais que circulavam por lá. No corredor, um deles nos avista e manda:

– Ué! Vão ficar por aí?

O discurso do padre que vinha da sala de batismo era escutado com perfeição. Enquanto isso, a sala do Comedores Compulsivos começava a lotar. Ainda baqueados, espiamos o entra e sai, até que a porta foi fechada. Pela janelinha, percebemos um problema delicado.

– Só tem gordinha.
– Não vai dar pra entrar. Os caras vão ver na hora que você não é do grupo.
– Posso falar que eu sou bulímica...

Nada feito. Sentamos no corredor para esperar a próxima reunião. Duas membras do Comedores deixam a sala.

– Você tá bem, hein! Te ver assim me deu ânimo! Desculpa te tirar da sala, mas é que preciso sair mais cedo hoje.
– Não tem problema, nos vemos semana que vem.
– Putz... tem um cartaz aqui dizendo que semana que vem não tem grupo porque vai ter festa junina da igreja. Oba, vou vir! Quentão, paçoca... vai ser minha prova de fogo.
– Força, amiga!

A iluminação da igreja para o casamento já estava montada. O pianista treinava as melodias da cerimônia quando um pipoqueiro se aproxima:

– Quer um saquinho, moça?
– Não, obrigada. O senhor fica aqui todo dia?
– Não, só quando tem casamento. Aquele outro povo não compra nada.

18h – Crack, cocaína e simpatia
A escada está mais agitada do que nunca. As gordinhas davam lugar a um grupo grande, de umas 30 pessoas, na maioria homens, nenhum muito jovem. Falavam sobre futebol, motocicletas e o frio. O grupo dos narcóticos começava em cinco minutos, quando um deles apagou o cigarro, deu um oi simpático e puxou assunto:

– Você é nova?
– Hum hum.
– Vamos, eu te ajudo. Vai começar, e vai ficar tudo bem.

Na reunião dos narcóticos, os casos são mais duros e os problemas, mais reais. Crack e cocaína direto. A maioria estava ali havia mais de um ano, muitas histórias de recaídas, famílias destruídas e internações. O coordenador encoraja os novatos na sala, diz que são as pessoas mais importantes da noite e que para falar basta levantar a mão. Ficamos em silêncio.

19h30 – Namorei bêbado, casei bêbado
Um homem de uns 60 anos sentado na escada puxa papo:

– Um dia chegou uma moça e perguntou se o Mada (Mulheres que Amam demais Anônimas) era aqui. Aí a colega dela brincou e perguntou se eu ia no Homens que Amam demais. Sabe o que eu respondi? “Não, moça, sou dos homens que amam de menos. Porque é isso que o alcoólatra é. O alcoólatra não ama ninguém não, moça.” Né, não?
– Acho que é.
– Mas agora tô ficando bom. Nasceu minha neta. A primeira pessoa de que eu gosto na vida. Sou separado. Separei sabe por quê?
– Brigou?
– Briguei nada. Mas olha o raciocínio: eu namorei bêbado, casei bêbado, tive filho bêbado. Na hora que parei de beber e olhei pro lado, pensei: quem é essa aí? Não sabia quem era aquela não.

20h30 – Bitucas e Red Bull
Na escadaria do predinho, a bituca de cigarro voa sobre a calçada e apaga na poça de água da boca de lobo.

– Não parou de fumar?
– Peraí, né! Parei de beber, parei de cheirar...Tô parando até com o energético! Calma lá.
– Dizem que colocaram dois ratos na gaiola. Um viciado em pó e outro em tabaco. O de taba...
– Já sei, já sei. Meu marido já me contou dessa pesquisa. O fumante demora mais a largar que o cheirador. Mas eu não sou rato. Não consigo cortar tudo que é bom de uma hora pra outra.
– Corta o cigarro e fica com o energético.
– Não dá. Cada vez que eu pego uma latinha meu filho grita: “Paiêêêê! A mamãe tá tomando Red Buuuull!”.

O diálogo acontece na escadaria do prédio. Cinco alcoólicos batiam papo com três membros do Narcóticos. Dois deles frequentavam ambos os grupos. Os dramas contados pipocavam na minha cabeça com o volume no talo.

Na entrada da igreja, o carro da noiva estaciona ao mesmo tempo em que uma invasão de mulheres sobe as escadas para o encontro do Mada. De um lado, a celebração do amor. Do outro, a luta para sobreviver aos excessos do mesmo sentimento. Subo as escadas e entro na sala. A última reunião do dia ia começar.

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