Estamos abrindo mão de pensar por conta própria
Quem foi contra o sonambulismo geral e desconfiou do resultado da pesquisa do Ipea sobre mulheres e estupro – que depois descobriu-se estar errado? Estamos abrindo mão de pensar por conta própria
Caro Paulo,
O veneno é a anestesia!
Quem corrigiu a pesquisa do Ipea que dizia que 65% dos brasileiros achavam que mulher que expõe o corpo merece ser estuprada? Quem foi que desconfiou que podia ter erro na informação oficial da instituição oficial do governo oficial? Quem foi contra a mídia oficial que aceitou e usou a informação oficial como verdade? Quem foi o antídoto do sonambulismo geral que não pensou nem pesou sua própria opinião e sua sensibilidade pessoal quando ouviu tamanha barbaridade? Quem é esse herói ou, mais provável, heroína?
Legal ficar indignado, tirar a roupa e protestar, mesmo que haja apenas uma pessoa que acha que a vítima é o culpado do estupro. Mas não é disso que estou falando.
O problema não é o percentual absurdo, mas a atitude de aceitar o percentual absurdo como verdade. Parece que estamos abrindo mão de pensar por conta própria, de ter sentimentos próprios, de sermos nós mesmos os leitores de nossa época. A pesquisa estava errada! Essa é a verdade! O instituto e a ferramenta de fundamento científico estavam errados! Quem disse isso quando viu a notícia? Quantos disseram isso?
Aceitar esse absurdo como verdade soma ao pessimismo que justifica o medo, a violência, o mau humor, a perspectiva brochante de que a realidade não tem jeito, de que é assim mesmo, de que está tudo piorando.
Não é verdade! Estamos passando por um momento épico de transformação dos pressupostos do que é uma vida boa, do que é viver bem neste mundo. É uma revolução de costumes que atordoa porque mexe com os fundamentos do nosso estilo de vida. Não é fácil, mas quando a gente toma distância e se afasta do assassinato e da corrupção do dia e, lá do alto, alcança o espírito da época, o cenário é animador e torna a passagem menos difícil.
SEM ANESTESIA
Olha que delícia poder concordar com a Lya Luft na sua crônica na revista Veja #2.368 que acabou de chegar à minha mesa: “Enquanto tivermos a mente clara, e se o pessimismo não tiver secado nossas emoções, haverá coisas a curtir nesse fluir da vida. Se conseguirmos escapar desse espírito da manada, as águas poderão nos levar numa viagem instigante”.
São reflexões de seu novo livro O tempo é um rio que corre, cujo tema é a vida vista 50 anos depois que começou a escrever. Ela captura o Zeitgeist do alto da pilha de letras do agora (leia a crônica ou o livro!), com uma poesia, uma beleza e um realismo que só uma velha gostosa e talentosa como ela poderia ter. Sua fé nas “águas” é contagiante. E por isso recomponho seu pensamento: “Se conseguirmos escapar ao espírito da manada que nos queria todos conservados eternamente no formol da futilidade, as águas – que não param quando dormimos, usamos o computador, comemos o hambúrguer, choramos no escuro ou cantamos baixinho porque nos sentimos bem – poderão nos levar numa viagem instigante”.
Meu caro Paulo, se existe algum risco de barbárie, ele reside na inconsciência, na insensibilidade, no conforto e na preguiça que alimentam a inércia do pior em detrimento do melhor em nós. Nossos problemas não são os problemas, mas nossa incapacidade de reconhecer o que é o problema.
Eu acredito na viagem instigante. Sem anestesia, certo, Lya?
Meu abraço,
Ricardo
*Ricardo Guimarães, 65, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus