Companheiro Panda

por Henrique Goldman
Trip #213

Goldman: ”um dia um amigo meu confessou um segredo”

Durante anos fomos grandes amigos, escrevíamos juntos, vestíamos roupas parecidas. Mas havia uma grande diferença entre nós: ele nunca namorava ninguém. Um dia, confessou: “sou gay”

Passamos uns oito anos juntos, quase diariamente fechados na minha casa escrevendo roteiros, compartilhando memórias e sonhos, admitindo culpas e vergonhas inconfessáveis entre baseados e ecstasy, rindo loucamente de coisas que para o resto do mundo eram absolutamente sem graça, achando todos e nós mesmos ridículos por razões muito absurdas. Frequentávamos o mesmo grupo de amigos, vestíamos roupas parecidas, amávamos o romance Bouvard e Pecuchet, do Flaubert, com o mesmo ardor, detestávamos os filmes – e mais ainda quem gostava deles – do Lars Von Trier com igual desdém. Tínhamos mais de 30 anos, mas nossa amizade era um formol que nos mantinha preservados em plena adolescência. 

Havia, porém, uma grande diferença entre nós: ele nunca namorava ou comia ninguém. Sempre que eu arrumava uma namorada, ele assumia o papel de filhinho, bichinho de estimação do casal, que vai pro berço enquanto papai e mamãe brincam de papai e mamãe. Em vão, várias vezes tentei empurrar mulheres para ele. Passei a chamá-lo de Panda, espécie rara e delicada de urso, cujos macho e fêmea só acasalam em condições especiais: em altitude mínima de 2.700 metros acima do nível do mar, quando podem comer um tipo raro de folha de bambu e quando a umidade relativa do ar é idêntica à das montanhas do leste da China.

Um dia meu Panda chegou na minha casa pálido, evitando meu olhar e com saliva branca ressecada nos cantos da boca, o que me fazia entender que algo o estava incomodando. Para relaxá-lo, enrolei um baseado e perguntei se estava tudo bem. Ele respirou fundo e respondeu: “Preciso confessar. Sou gay”. Fiquei embasbacado. Eu deveria ter intuído isso antes, mas nunca havia passado pela minha cabeça. Falávamos de tudo. Como não tocamos nesse assunto? Tentando disfarçar o choque, o abracei como uma mãe liberada – mas ansiosa – abraça a filha quando ela conta que perdeu a virgindade.

Ainda nervoso, ele perguntou se isso afetaria nossa amizade. Eu disse que para mim nada mudaria e fui sincero. Ele podia dar ou comer o quanto quisesse e isso não era problema meu. Tinha uma só condição: eu queria poder chamá-lo de bicha, bichórdia à vontade, sem me reprimir. Ele deu risada. Mas logo parou de rir, disse que a confissão não tinha acabado e me deu um beijo na boca. Eu o afastei, assustado. Expliquei que já éramos um casal. Amava ele muito, mas tesão eu sentia por mulher.

Não tocamos no assunto e por alguns dias pairou uma nuvem esquisita no ar. Mas me convenci de que ele tinha encarado numa boa, já que não tocou mais no assunto. Continuamos a nossa rotina de roteiro, maconha e muito sarcasmo como se aquela confissão – e a recusa do beijo – em nada tivesse nos afetado.

Silêncio
Ele desmunhecou geral. Tingiu o cabelo, arrumou mil namorados. Entrou numa academia e deixou de ser aquele Pandinha fofo e reprimido. Ele se encontrou. Mas fui percebendo que algo estava me incomodando. E não tinha nada a ver com sua orientação sexual. Nesses anos todos ele tinha dado a impressão de ser diferente do que era. Por que escondeu sua homossexualidade por tanto tempo, sabendo muito bem que eu não o julgaria por isso? Na época não consegui ser honesto o bastante para fazer a pergunta que deveria ter feito: “Por que você não me contou antes?”. Eu não perguntei, ele não respondeu e esse silêncio foi, com o passar do tempo, a causa do nosso fim.

Não consigo entender como uma intimidade enorme pode se traduzir numa distância tão grande. Não entendo bem o que foi que mudou. Mas nos afastamos quase totalmente. Penso muito nele e ainda acho graça do mundo que criamos e desapareceu. Queria poder dizer isso para ele com carinho, mas estar próximo dele hoje me faz sentir uma enorme preguiça de viver.

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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