Do amargo tirar doce

A cirrose já se instalou no meu fígado e é irreversível. Um exame detectou um nódulo que pode ser cancerígeno. Ainda assim, a cada dia construo novas esperanças

O antônimo de doce não é salgado. É amargo. Sempre fui muito amigo de doce. E hoje não posso comer nada doce. Minha vida tem sido amarga. Tudo começou no fim de 2004. De repente, em vez de uma gripe eu estava com uma pneumonia. Fui fazer exames e restou um monte de doenças que jamais imaginei que teria. Até então, frequentava academia (teimoso, ainda frequento), corria na rua e fazia longos percursos andando. Sempre gostei muito de andar, olhar, conhecer. Gosto de estar atlético, jamais relaxei com meu corpo nesses quase 64 anos de vida.

Parecia a música do Titãs: taquicardia, pressão arterial, asma, pneumonia… E a tomografia indicava alguma complicação no fígado. No exame de sangue apareceu o que era: hepatite C. O médico, doutor Mario Pessoa, afirmou que existem mais de 2,5 milhões de pessoas infectadas por tal vírus no país. A maioria nem sabe; o fígado não tem nervos, então não há dor para avisar. Só se vai saber, como no meu caso, quase sem querer. Daí já pode ser tarde. A cirrose, causada pelo vírus, já se instalou em meu fígado e é irreversível. O médico está preocupado. Aconselha que as pessoas façam exames com foco no vírus da hepatite C, antes que seja tarde e ainda se possa tratar.

Durante o ano de 2015, caminhei de surpresa em surpresa. Em exames de fígado detectou-se um nódulo, que tinha tudo para ser cancerígeno. O médico deu certeza. É comum em casos de hepatite/cirrose o desenvolvimento de tumores cancerígenos. Em uma ultrassonografia, detectou-se outro nódulo. Acabo de fazer um exame de ressonância magnética para saber se este também é de origem oncológica. Caso seja, vou ser obrigado a fazer transplante de fígado. Aliás, entrar na fila do transplante, porque é demorado.

Para piorar um pouco mais, há duas semanas começou uma dor insuportável em meu abdome. Levaram-me ao Hospital das Clínicas. Sofri horrores em mais de 12 horas de espera, até ser atendido. Parece que até morfina me aplicaram para cessar a dor. Mas nada tinha a ver com o fígado; era uma úlcera no duodeno. Fiquei três dias internado, deitado em maca em observação. Furaram tanto minhas veias para injetar analgésicos que estou até agora com marcas expressivas. Estou sob regime rigoroso, tudo o que eu ingerir tem que passar pelo liquidificador, até carne. Não posso comer nada sólido.

Emagreci e fiquei mais fraco. Toda minha economia de dez anos e a ajuda de amigos está indo em remédios e exames. Mas olha, o sol vence as sombras e todo dia brilha novamente. O mal não me venceu. Há esperanças que construo a cada dia. O que vai acontecer? Não sei da natureza, mas sei de mim: será mais um livro que escreverei contando como venci ou perdi para a doença. A dignidade, a honestidade de princípios e a honra são valores que vou continuar a perseguir até o último suspiro. Sinceramente não tenho medo. Somos seres que se adaptam a tudo, até ao pior do pior.

SEM MAR DE ROSAS
Minha vida nunca foi um mar de rosas, eu nem saberia viver sem dificuldades. Preciso delas para progredir, para dar sentido à vida. Este último ano tem sido bastante amargo, mas há o doce nisso tudo também. Nunca fui tão consciente do valor de minha vida e dos outros. Nunca aprendi tanto como nesse ano que passou. Nunca aprendi a valorizar tanto meus amigos e a ajuda que recebi.

Jamais acreditei que chegaria à idade que estou hoje. Temia o sofrimento da morte. Vivi o extremo da dor, quando não se pensa em mais nada e ninguém a não ser cessar a dor. Descobri que todo sofrimento humano é uma travessia e que vale a pena lutar para continuar a viver. Sim, eu queria viver mais e provavelmente é o que vai acontecer. O que quero de verdade é escrever, deixar um legado, algo que dê sentido ao fato de eu haver vivido. Este é o doce de minha vida: saber que tenho essa condição e vou saber utilizá-la. A vida é muito interessante: nos dá condição de até no sofrimento encontrar um sentido de viver; do amargo tirar o doce.

LUIZ ALBERTO MENDES, 63, é autor do recém lançado Confissões de um homem livre.
Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com 

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