Mais do que tudo, e com urgência, é necessário recuperar a cordialidade e a civilidade no país
O clima está pesado. Na coluna para a Trip de novembro do ano passado, assustado com o impressionante nível de animosidade coletiva a que havíamos chegado no período eleitoral, eu escrevi que, fechadas as urnas e conhecidos os resultados, seria a hora de, vitoriosos ou derrotados, perdoar e abraçar os amigos que, por algum motivo, tivessem votado no(a) outro(a) candidato(a). Não aconteceu. O clima não só não melhorou – como conseguiu piorar.
Eu acredito que nenhuma democracia funciona bem à base de plebiscitos, de discussões ásperas entre grupos que reduzem tudo a certo e errado, branco e preto, vida e morte. A democracia ideal é a que comporta matizes, pluralidade, em que as diferenças não são resolvidas com xingamentos. Um exemplo: a democracia suíça vai bem, ainda que o país fale quatro línguas, porque as minorias têm seus direitos respeitados. Em alguns lugares as eleições ocorrem em praça pública, com cada cidadão tendo o direito de pedir a palavra e se expressar. Por outro lado, num país próximo e em muitos aspectos parecido, a Bélgica, a democracia não vai bem, porque o país é dividido entre duas populações (de matrizes holandesa e francesa) que se odeiam, que se sentem exploradas uma pela outra, e que não conseguem debater, com serenidade, temas de interesse comum. E é desse jeito que estamos ficando. Se prosseguirmos nessa toada, tornaremos as coisas muito mais complicadas.
De quem é a culpa? De todos nós, é claro. Por termos sido tão alheios à discussão sobre as regras da política e, assim, termos deixado que os políticos legislassem, por anos a fio, em causa própria. Por permitir que marqueteiros fizessem o que bem entendessem, vendendo candidatos com as mesmas técnicas com que vendem sabão em pó, mentindo à vontade. E por cair na conversa dos marqueteiros, relativizando as mentiras dos “nossos” – e malhando as dos “outros”. Por seguir dando ouvidos a políticos que se dizem responsáveis por tudo o que de bom aconteceu no país, culpando os opositores por tudo o que aconteceu de ruim, e vice-versa. E, principalmente, somos culpados por termos deixado crescer, dentro de nós, o ódio contra todos os que pensam diferente.
SEM VILÕES
Você quer saber se, no atual contexto, eu tenho uma posição? Sim, e ela é bastante clara, até dura. Apenas não é partidária, no sentido de que não me sinto confortável com qualquer um dos partidos políticos do Brasil de hoje. E não creio que esta coluna seja o espaço para externar o que penso do governo e da oposição, mas quero dizer que, acima de qualquer posição, tomo o cuidado de não tratar como vilões os que discordam de mim.
Existe saída? Temos de acreditar que sim. Não podemos nos esquecer de que, embora o Brasil independente já tenha quase 200 anos, ainda temos pouca prática com a democracia. Algumas mudanças em nosso jeito de fazer política e governar poderiam fazer uma grande diferença. Um regime parlamentarista, por exemplo, lida com crises da natureza como a que agora enfrentamos de uma forma muito menos traumática. Cai um governo, outro assume, e nenhuma ruptura institucional surge no horizonte. Também ajudaria bastante a limitação radical de gastos com propaganda eleitoral (muito mais do que o simples financiamento público), com uma regulamentação rígida do que pode, e como pode, ser veiculado. O voto distrital nos deixaria mais próximos de nossos representantes. A eliminação dos partidos-agências-de-negócios seria muito bem-vinda.
Acredito que precisamos de uma reforma política muito mais ambiciosa do que a que tem sido proposta por aí. Mas, mais do que tudo, e com urgência, penso que precisaríamos começar por recuperar a cordialidade e a civilidade. Sim, o clima está mais que pesado, ele está peso-pesado. Vamos tentar melhorá-lo?
*André Caramuru Aubert, 53, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com