Claudia se foi. Sua briga agora é nossa

por Lino Bocchini

Ativista LGBT e ícone da noite de São Paulo, Claudia Wonder morre aos 55 anos

No meio deste ano fiz uma longa reportagem sobre a travesti Andréia de Maio. Última cafetina romântica do centrão de São Paulo, além de cobrar pedágio, Andréia cuidava dos travestis da região. Ia tirá-los da delegacia e punha pra correr os playboys que iam lá encher o saco das garotas. Entre as muitas pessoas que ouvi, estava Claudia Wonder. Não a conhecia pessoalmente e, confesso, pouco sabia de seu passado marcante além de algumas poucas histórias. Nada comparado a meu amigo e também jornalista Mario Mendes, que me sugeriu entrevistá-la e de quem eu gostaria muito de ler um texto sobre Claudia. Nada também comparado ao conhecimento do também amigo Vitor Angelo, autor do até agora melhor texto pós-morte sobre Claudia.

Hoje cedo quando soube de sua morte, recuperei e ouvi a gravação da conversa de cerca de uma hora que tive com ela em meados de junho. Claudia me recebeu em sua casa, nos Jardins. Senhora elegante e inteligente, apartamento limpíssimo e arrumado, cara boa e conversa serena. Não lembrava nem de longe a tresloucada band leader que barbarizava no Madame Satã e aparece no auge da vitalidade no documentário Meu Amigo Claudia, de Dácio Pinheiro (trailer abaixo).

Começamos falando de Andréia de Maio, mas logo a conversa se desviou para vários outros assuntos, como sua atuação histórica por mais dignidade para as travestis. Ela lamentava com todas as letras o fato de as travestis sempre serem a “testa de ferro”, o pára-choque de toda a questão gay. Elas são o cartaz pra ser pichado e apedrejado na rua, ou pra ser espancado com lâmpada fluorescente e pontapés. Lamentava ainda como elas morrem aos montes, novinhas, pelos motivos mais estúpidos. E de como continuam morrendo até hoje, diariamente.

Pior, Claudia não escondia um misto de cansaço e revolta pela constatação óbvia de que ninguém se importa com isso, nem mesmo os gays não-travestis. Mas porra, na boa, deveríamos nos importar. Por isso recuperei o áudio dos trechos em que ela fala sobre essa questão (abaixo). Lamento muito não ter gravado em vídeo. Infelizmente, Claudia se foi sem ver avanços nesse massacre. Sobrou pra nós essa missão de aceitar que alguns homens se vistam de mulher, ou que algumas pessoas “sejam homem e mulher”, como ela dizia. Não pode ser tão difícil, ou pelo menos não era pra ser. Mãos a obra. Por Claudia.

Leia alguns trechos da entrevista:

"Eu trabalhei de uns tempos pra cá, há uns dois anos me entreguei a
uns projetos sociais em prol dos travestis. A gente inaugurou ali na
Boca mesmo o Centro de Referência da Diversidade, na Major
Sertório, e ali a gente fica sabendo das coisas: virou meio que opção
de marginal, sabe, cafetinar travesti. Dependendo da área pode
ter um ou dois, que não são travestis. Tinha um cara que era o
Malhação, era um cara, saído da cadeia que começou a atacar -
eles brutalizam mesmo - bate na travesti, corta o cabelo, pra todas ficarem com medo. Quem aluga uma casa, até presta um serviço, digamos assim, porque não tá explorando de forma absurda. Hoje até que tá mais fácil mas antes pra um travesti alugar apartamento era muito difícil, ainda mais pra quem é puta na  rua. 'Vou sujar o prédio, causar com meus vizinhos?' É complicada a a prostituição, e é só isso que as travestis têm pra fazer, né. Pelo menos as que tão lá. Tem muitas que não são putas, mas não se pode dizer; o que tá na rua você vê - as cabelereiras, mas não importa, vira e mexe eu encontro. Não dá pra saber se são tantas travestis que tão na rua são putas - mesma coisa que dizer que todo japonês é tintureiro. Mas é muito diícil pra uma travesti alugar apartamento - por causa dos documentos - se estuda, se tá trabalhando é mais fácil. Mas se tá na rua tendo uma cafetina onde ela possa dormir e comer, como a Andréia Di Maio... mas esse tipo de cafetão não dá nada, só vai lá e cobra o ponto."

"A travesti que está na rua não é respeitada por ninguém. Eu escrevia pra G Magazine, fazendo trabalho de conscientização falando que é possível ter uma outra forma de vida, mas pra chegar nelas não éatravés da revista porque nem todas compram. E tem travesti nova que aparece toda semana, porque tem vida curta, elas morrem cedo, morrem assassinadas, ninguém fala muito. Que nem escreveram: travesti é vítima dele mesmo - é verdade. No Fantástico apareceu a travesti que fez doutorado, pensei 'ah, legal, as coisas tão mudando'. Aí na terça vi aquele papelão da travesti do Rio batendo no cara indefeso, aí ninguém mais deu uma linha a respeito do assassinato. Travesti que tá na rua é vítima de homofobia, porque é como se fosse um escudo - de toda essa coisa gay, de diversidade sexual, é ele que tá ali, à mostra. Então é um esporte matar viado, aí mata, dá tiro..."

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