Choque de beleza

por Alê Youssef
Trip #214

Youssef: ”Grafite é uma manifestação que tem a cara de São Paulo”

Demorou anos para que o grafite fosse considerado arte. Quando o prefeito Gilberto Kassab mandou jogar cal sobre um painel de OsGemeos, a gritaria foi gigantesca. A sociedade já tinha assimilado que aquele tipo de manifestação era a cara de São Paulo

No primeiro mês de gestão, Marta Suplicy colocou em prática o Projeto Belezura, que buscava resgatar a autoestima da cidade de São Paulo por meio de um grande choque de beleza. O estádio do Pacaembu, na época completamente abandonado, foi escolhido como símbolo inicial de embelezamento. Criamos um evento que, ao mesmo tempo em que pintava e limpava o estádio e a praça Charles Muller, promovia uma ação com expoentes do grafite. Foram montados ali dois grandes painéis: um foi pintado por OsGemeos e o outro por Juneca e Celso Gitahy.

A atenção e a simpatia da então prefeita pelo tema abriram portas para que eu pudesse, através da Coordenadoria da Juventude, apoiar publicamente o grafite e contrapor o discurso simplista e policialesco contra a pichação. Seguiram-se muitos projetos desse tipo e todos tiveram que romper barreiras. As liberações para que OsGemeos fizessem seus painéis na avenida 23 de Maio e na ligação leste-oeste encontraram resistências. Não foram poucas as vezes que a polícia desavisada enquadrou os dois artistas no meio do processo de criação.

Eu era alvo de chacota por parte de secretários municipais e membros do alto escalão do governo por apoiar aquele tipo de coisa. Demorou anos para que o grafite fosse considerado arte pelo governo. A política institucional não compreendia o grafite, os grifos e a estética oriunda do hip-hop. Para a maioria era tudo pichação. Graças à persistência dos irmãos Gustavo e Otávio – que toda semana apareciam com a perua Lada vermelha cheia de tinta na sede da Coordenadoria da Juventude buscando suporte para seus projetos –, conseguimos destrinchar apoios privados e liberações. Passamos por cima das burocracias e estabelecemos uma rotina de intervenções que marcam a cidade até hoje.

Com os painéis de OsGemeos, criamos uma espécie de jurisprudência interna da prefeitura e outros artistas conseguiram autorizações baseados nela. Anos depois, quando o prefeito Gilberto Kassab mandou jogar cal sobre um desses painéis, a gritaria foi gigantesca e pôde-se perceber que a sociedade já tinha assimilado que aquele tipo de arte era a cara de São Paulo. Foi um dos maiores micos do seu governo: curiosamente e, a ação do cal ocorreu na mesma semana em que OsGemeos inauguravam a aclamada exposição na Tate Modern, em Londres.

Nova geração
A maior ação envolvendo o grafite e a prefeitura foi o projeto São Paulo Capital Graffiti, desenvolvido em parceria com o Projeto Aprendiz. Articulei com o jornalista Gilberto Dimenstein uma maneira de estimular a criatividade dos jovens artistas. Foram muitas reuniões com todas as subprefeituras para conseguirmos a liberação oficial de grandes muros públicos. O QG do projeto era a antiga sede do Aprendiz na Vila Madalena, que recebeu centenas de artistas para criarmos uma estratégia que fosse livre o suficiente para legitimar artisticamente a ação, mas minimamente organizada para não virar uma bagunça. Foi o São Paulo Capital Graffiti que oficializou o uso do túnel entre as avenidas Doutor Arnaldo e Paulista como um espaço livre para intervenções artísticas, assim como os pilares do Minhocão. Queríamos criar galerias a céu aberto e acho que conseguimos fazer um trabalho de retomada do suporte à vanguarda artística, para o que viria depois com a explosão da arte urbana que colocou São Paulo na rota internacional desse universo artístico.

Anos depois, especialmente com a criação da galeria Choque Cultural pelo casal Baixo Ribeiro e Mariana Martins, muitos dos artistas que despontavam em projetos como o São Paulo Capital Graffiti conquistaram espaço, importância e viabilidade econômica. A nova geração começou a ser reconhecida e, além de OsGemeos, nomes como Speto, Titi Freak, Binho, Tinho, Zezão, Stefan Doitschinoff e outros entraram no imaginário coletivo da cidade.

*Ale Youssef, 38, é criador do Studio SP e do Studio RJ, um dos fundadores do site Overmundo e apresentador do programa Cartas na mesa no canal GNT. Foi coordenador de Juventude da prefeitura de SP (2001-04). E-mail: alexandreyoussef@gmail.com/Twitter: @aleyoussef

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