Cenas Comuns de Centros Urbanos

por Luiz Alberto Mendes

Cenas do Cotidiano

 

           Pendurei-me. O ônibus estava abarrotado de gente. Gente contrariada, nervosa. E assuavam o nariz, esbravejam e disputam cada centímetro de espaço. Uma longa briga. Não podiam se dar ao luxo da educação. Antes, tinham que picar o cartão no horário determinado e sobreviver a cada dia.

           No empurra-empurra, quase como um caroço de abacate expelido, cheguei ao cobrador. Difícil até para retirar dinheiro do bolso. O cobrador batia uma moeda no ferro de sua mesa, acelerando: “Um passinho à frente”, dizia. Paguei a contragosto. Devia ser muito bem pago para agüentar aquilo. Fui sendo levado pelo povo que entrava a cada parada do ônibus. Lá fora chovia. O fedor de cachorro molhado só era superado pelo nauseabundo creme que as mulheres usavam no cabelo úmido.

           Não dá para comparar aquela compressão com lata de sardinha. Na lata, as sardinhas estão ajeitadas com um oleozinho e tudo. Submetido às exigências brutais da vida cotidiana, meu corpo era parte de todos os corpos; um imenso corpo de ferro sacolejante.

           À custo e fazendo uso de toda minha habilidade e força, encaixei-me em um vão. Alguém se jogara na correnteza que desaguava na saída do veículo. Recobrando o fôlego, observei as pessoas sentadas. O privilégio dos bancos nos diferenciava. Invejei cada um dos ocupantes. E o ônibus corcoveava, sacudia e embrulhava o estômago. Corria, parecia estar fugindo do inferno tendo todos os demônios atrás.

           Do lado esquerdo, um sujeito parrudo, através olhares, dizia: "Não empurre, senão..." Lancei olhar de desdém à sua ameaça: "Grande coisa!" Que pensava ele: eu era excelente espadachim de olhos!

           Ao meu lado direito, uma moça segurando um pacote rosa que lhe tomava todo tronco. Reparei, puxa, era um bebê! A garota segurava a alça do banco com uma mão e com a outra, aparava sua delicada carga. Automaticamente olhei para os bancos. Ninguém se preocupava com o perigo que corria aquela criança. Vibrei a espada dos olhos como uma metralhadora a derramar balas censoras no povo sentado.

           Um rapaz sentado à janela pareceu ler meus pensamentos. Depois de complexa manobra, posicionou-se em pé. Uma senhora tentou adiantar-se. Barrei sua passagem acintosamente e, com um jogo de corpo, dei inteiro acesso à garota.

           Acomodada a garota agradeceu com os olhos, após longo suspiro de alívio. Observei-a lidar com seu bebê. Ela parecia a mais dedicada das mães. Mas seu semblante denunciava preocupação. Estava atenta demais. Sei lá porque, impulsivamente abaixei até a jovem e perguntei:

           -O que tem o nenê?

           Olhou-me assustada, com jeito de pássaro indefeso. Ao notar meus olhos desarmados, respondeu apressada:

           -Nasceu doente. Estou levando ao Hospital das Clínicas para hemodiálise. De dois em dois dias ela necessita de transfusão de sangue. A voz era um fiapo de manga.

           Seus olhos ficaram úmidos. Uma doce, estranhamente doce dor esparramou-se em seu rosto, empalidecendo-o. Havia enorme aflição no que dizia. Doía em mim. Aquilo acordava uma agonia antiga, escondida pela claridade do dia.

           Não tinha intenção de me apiedar e nem sentir compaixão pôr ninguém. Não queria me envolver em dramas alheios. Os meus já eram demasiadamente pesados. E ali estava eu; nu e sem palavras, embaraçado, de repente quase chorando.

           A garota voltou aos seus cuidados com seu nenê. Toda minha humanidade se derramou sobre ela. Eu a senti mãe, como minha mãe. Desejei, do fundo do coração, toda felicidade do mundo a ela e seu bebê. O ônibus foi esvaziando e pude até me sentar também.

                                  **

Luiz Mendes

04/06/2010.       

fechar