Henrique Goldman se pergunta: ”Em que ponto da história nos perdemos um do outro?”
Anteu eu era teu e você era meu. Agora estamos condenados a viver nesse eterno Alzheimer. Só em momentos fugidos nos são revelados os elos subterrâneos entre diferentes terras, espécies e gerações.
Em que ponto da história nos perdemos um do outro? Foi no mar, no céu ou no deserto? Ou no meio da multidão, na arquibancada do Pacaembu assistindo a um Santos e Corinthians? Diz pra mim, pai, pode dizer, agora que, como você, sou pai e homem de verdade. Ou homem de mentira?
Nem saberia mais o caminho de volta – sequer o endereço de casa – quando desejasse te reencontrar, em vez de ficar assim, esparramado aqui nesta esquina.
Você, em certo ponto, não quis mais me acompanhar até aonde eu estava indo? Ou fui eu que larguei a tua mão? Mas já não tínhamos nos perdido, pra começo de conversa – como você e teu pai se perderam –, antes de tudo, em Daomé ou em Canaã?
Foi você quem não telefonou? Fui eu quem não atendeu? Você ficou quieto por rancor? Ou eu, surdo de arrogância? Uma vez você nem passou pra me pegar. Fiquei esperando. Na outra, eu arrumei uma carona e fui embora antes da hora combinada só pra não te ver.
Antes eu era teu e você era meu. Mas a essência da nossa comunhão, da nossa fusão, estava na própria separação. Até há pouco tempo não sabia disso. Mas meu filho não para de esfregar meu nariz nessas mesmas lamas vitais que ele também vai esquecer.
Estamos condenados a viver neste eterno Alzheimer. Só em momentos fugidios, como quando choramos profundamente e tocamos o amor profundo, nos são revelados os elos subterrâneos entre diferentes terras, espécies e gerações. O segredo é muito simples, quase banal. Não tem nada a ver com Deus, mas é sagrado: todos os que existiram no passado – e todos os que existirão no futuro – estão ligados a tudo o que existe aqui e agora.
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br