Carta aberta para Luisa

por Henrique Goldman
Trip #170

Em texto ficcional, nosso colunista Henrique Goldman retrata a naturalidade com que o assédio sexual ainda é tratado no Brasil

Oi Luisa,

Será que você lembra de mim? Sou filho da dona Fany, do Bom Retiro. Provavelmente você lembra, mas talvez por desgosto tenha removido aquela absurda tarde da memória. Só me permito lembrar – lavando estes panos sujos assim tão publicamente – porque o mundo é cheio de Luisas. Porque já se passaram 32 anos e porque, lamentavelmente, o que aconteceu entre nós não é tão incomum.

Quantos anos você tinha? Vinte, trinta? De onde você era? Quem você era? Só sei que você era empregada de casa, que teus seios eram fartos e que eu tinha 14 anos. Você era tímida e já trabalhava em casa há algumas semanas quando a Sheilinha, uma colega de classe, me disse que você já tinha trabalhado na casa da família dela e que você “dava para um motorista de táxi”.

A idéia de que você “dava” não saiu da minha cabeça, e você começou a estrelar obsessivamente todas as minhas punhetas. De tarde eu ficava rondando pela área de serviço enquanto você lavava a roupa. Era um tesão incontrolável, aflito, desesperado e covarde.

Eu nunca gostei daquele bosta do Adalberto e não me perdôo por tê-lo envolvido nessa história. Até hoje, nas poucas reuniões da turma do colégio Renascença, eu o evito. Mas ele era maior e mais corajoso, e eu recorri a ele. Sinto muito remorso, Luisa, pelo que fizemos.

Meus pais e irmãs tinham saído e você estava varrendo a sala quando eu e o Adalberto demos o bote. Não lembro qual foi o nosso papo, mas imagino que tenha sido a coisa mais ridícula do mundo. Pedimos, insistimos sem parar para que você “desse” para nós.

Casa-Grande e Senzala

Lembro de poucos detalhes. Você não queria, mas por força da nossa insistência acabou cedendo. Sinto ódio do Brasil quando penso que você provavelmente tivesse medo de perder o emprego.

O Adalberto, é claro, foi o primeiro. Subi numa escada e fiquei olhando através da janelinha do cubículo que era o teu quarto. Depois fui eu. Não foi bom, Luisa. Na hora do vamos ver fiquei envergonhado e não rolou legal. Até hoje me envergonho. Muito.

Espero que você esteja bem. Espero que para você a memória daquela tarde não seja tão ruim e que você hoje possa rir do que aconteceu.

Desculpas, Luisa.

Henrique.

Resposta aos leitores

Trip esclarece o que deveria ter ficado claro já na publicação da coluna “Mundo Livre” da edição de setembro: trata-se de um texto de ficção, um recurso usado com freqüência pelo colunista Henrique Goldman.

Pedimos desculpas por não ter apontado o caráter ficcional do texto “Carta Aberta para uma Luisa”. E, ainda, pelo desastrado pé biográfico (já corrigido). As duas atitudes conferiram, involuntariamente, um tom leviano a um assunto que não pode nem deve ser tratado levianamente – seja como ficção ou como realidade.

Trip considera inaceitável qualquer forma de assédio ou violência sexual.

Henrique Goldman, conforme seu depoimento abaixo, nunca cometeu abuso sexual, nunca teve uma empregada doméstica chamada Luisa nem colegas Sheilinha e Adalberto. Mas, lamentavelmente, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Assédio e violência sexual são crimes freqüentes no Brasil.

Como tais, devem ser repelidos, denunciados, combatidos e debatidos. Como Goldman escreve, “Só me permito lembrar – lavando panos sujos assim tão publicamente – porque o mundo é cheio de Luisas”.

E, vale completar, cheio de abusadores de Luisas. Muitos deles, impunes. Os atos desses abusadores merecem, sempre, a aversão e a repulsa da Trip.

Nota de Henrique Goldman

“Prezados leitores,

Antes de mais de nada, preciso esclarecer algo: nunca estuprei ninguém na minha vida. Nunca tive uma empregada chamada Luisa, e nem estudei com qualquer Sheilinha ou Adalberto. Meu único ‘crime’ foi ter feito um texto ficcional sem deixar isso claro. Estou muito abalado com tantas mensagens agressivas que recebi. Me arrependo muito de ter criado este mal-entendido num mundo já tão cheio de merda e incompreensão. Posso ser um puta chato, péssimo colunista e pensador ordinário, mas não seria capaz de cometer crime algum, muito menos um tão hediondo. Me desculpo também com os editores da Trip por qualquer transtorno.”

Créditos

Imagem principal: Irena Zablotska

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