Arthur Veríssimo visita uma chácara onde o uso da Cannabis é sagrado
Em uma chácara esfumaçada de Americana, Arthur Veríssimo passa uma agradável tarde na companhia de Ras Geraldinho Rastafári e os discípulos da igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, onde o uso da Cannabis é sagrado
Da porta da igreja, escuto uma música das antigas vinda do fundo do tabernáculo. Aquele mantra eu já conhecia desde a minha púbere adolescência. "Rastafari is /Lord of Lords and Savior/He’s the mighty/Mighty onn, Thunderable, Thunderable one/Rastafari is." O hino rastafári ecoado pela voz do sumo sacerdote Peter Tosh.
Estou na sede da "primeira igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil", Americana, interior paulista. Um clima de altíssimo-astral permeia o ambiente. Somos recebidos por sorrisos e gentilezas. A área construída tem o formato da letra P e muitos sofás, mesas, cadeiras, TV de LCD, geladeira, computadores e redes. Resplandecente, surge o responsável, o simpaticíssimo Geraldo Antonio Baptista, (aka) Ras Geraldinho Rastafári. O homem é ativista social, ambientalista, publicitário, elder (ancião) da igreja Niubingui e se considera o maior expert em maconha do Brasil. Jah Rastafáriiii. Seu pensamento e raciocínio caminham lado a lado com o maior ativista pró-hemp de todos os tempos, Jack Herer, autor da obra-prima The Emperor Wears no Clothes, que conta tudo aquilo que você queria saber sobre a maconha, mas não aprendeu na escola.
Ras Geraldinho Rastafári não se faz de rogado e acende um turbobaseado. Suas sábias palavras são dignas de um antropólogo e sacerdote radical da nova era. Ele se parece com alguém? Aciono minha memória e depois de rebobinar meu hard disk encontro num canto recôndito o personagem. Adivinhem? Freewheelin Franklin, líder dos enfumaçados Freak Brothers, das histórias alucinantes de Gilbert Shelton. A mente de Ras Geraldinho é puro néctar de THC, seus desdobramentos e sinapses revelam um universo que poucos conhecem.
A fumaça no ambiente é densa e perfumada. Ras Geraldinho acende outro baseado e nos mostra uma Bíblia sagrada branca com a folha da Cannabis na capa. A edição é a famosa versão do Rei James para a igreja anglicana. Segundo Geraldinho, no livro encontram-se diversas citações relacionadas à maconha. Peço para Nelson, o fotógrafo que me acompanha, registrar algumas passagens e saio com o profeta de Americana para conhecer suas plantas no terreno da igreja. Conto ao Ras que já estive em duas edições da Cannabis Cup em Amsterdã. Admirado, Geraldinho flutua até sua planta number one. Fico boquiaberto diante de um imenso arbusto de maconha em seu estado de maturidade, exalando um aroma telúrico.
Pergunto ao homem como foi o processo de formatar a igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil. "Arthur, há cerca de seis anos estabeleci a igreja nesta chácara. Sou delegado da Primeira Conferência Nacional de Saúde Ambiental dos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e das Cidades, onde representei minha igreja e defendi estudos para o uso medicinal e industrial da Cannabis. Este local é uma entidade religiosa de direito e de fato, como atestado pelo alvará fornecido pela Prefeitura Municipal de Americana", explica o sacerdote.
Para o advogado Daniel Passos, o alvará soa como algo temporário. Aos olhos da lei brasileira, fumar um baseado em uma igreja Rastafári não é o mesmo que tomar um chá de ayahuasca em uma cerimônia do Santo Daime. "A autorização para o Daime é protegida pela Funai e pelo Estatuto do Índio. O Brasil é um Estado laico. Logo esses procedimentos para a liberação de substâncias psicotrópicas em rituais religiosos devem ser observados com cautela".
Quando retornamos ao salão principal, isto é, ao tabernáculo, uma galera de mais de 30 pessoas aguarda a exibição do documentário Run From The Cure, sobre o uso medicinal da maconha. Aproveito a deixa para conversar com alguns integrantes da igreja. Ras Junior Ali é o vice-presidente da entidade. Mora em Piracicaba, trabalha com informática e fuma da erva sagrada há mais de dez anos. Segundo Ras Junior, o espaço da igreja está aberto para qualquer pessoa. Na Niubingui o culto não tem horário preestabelecido e o fundamental é o ato de compartilhar ideias e debater assuntos da sociedade. Marlene, cicloativista e namorada de Ras Geraldo, é tesoureira, organiza as visitas e garante a reciclagem de todo o lixo da chácara. Samir, o filho de 20 anos de Marlene, é totalmente rastafári. O próprio se aproxima durante a conversa com Marlene. Sua aura emana boas vibrações. "Minha vida é totalmente voltada à cultura rastafári. Alimentação, leitura, música e filosofia. Sou rasta do cabelo ao coração", diz. Uma moça alta e loira entra na conversa. É Sister Denise, que frequenta os cultos há dois anos e meio e tornou-se secretaria da igreja Niubingui. Namorada de Ras Vinicius, não se considera rasta, mas é uma grande admiradora do estilo de vida.
No fim do documentário, Ras Geraldinho abriu a reunião para um debate sobre os rumos da maconha. Pergunto ao mestre se ele já teve problemas com a justiça. "Em julho passado a Dise [Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes] invadiu minha igreja, levando seis pés de maconha plantados para serem usados na liturgia religiosa. Destruíram material religioso e me levaram para prestar depoimento. Fui informado de que seria indiciado e estou esperando o chamado da Justiça para responder, mas até agora nada andou. Meus direitos foram violados, os policiais entraram sem mandado judicial. Na nossa igreja o uso da planta sagrada é estritamente para consagração. Faço uso da planta há mais de 35 anos, sem a mínima relação com práticas ilícitas ou criminosas".
Ras Geraldinho acende outro e convida todos a compartilhar uma refeição, uma deliciosa sopa com ingredientes orgânicos. Alimentados e refeitos, nos organizamos e nos despedimos. Na saída, Ras Geraldinho, emocionado, agradece nossa visita e convida-nos para o próximo sarau. Abençoado seja, Jah Rastafári. Até a próxima.