Canabinoide visto como ”coisa de maconheiro”, THC tem eficácia comprovada para alívio da dor e melhora a qualidade de vida em pacientes com fibromialgia – mais de 1,2 milhão de brasileiros
A polêmica sobre o uso medicinal de Cannabis está muito viva no Brasil, por conta da iniciativa parlamentar que pretende regulamentar o uso de maneira ampla, incluindo cultivo da planta em solo brasileiro, conhecida como PL 399/15.
Apesar da ferrenha oposição à iniciativa, todo o processo foi marcado por uma discussão multipalteral, e que sobretudo respeita a opinião e perspectiva dos maiores interessados (os pacientes) e dos maiores especialistas (médicos e cientistas da área).
Para os mais conservadores, a discussão gira em torno do uso do "CBD" (canabidiol) em epilepsia, enquanto o uso do "THC" (tetrahidrocanabinol) seria "coisa de maconheiro", e uma "invencionice" para justificar o uso recreativo da planta entre adultos. É comum também ouvirmos um receio tremendo quanto ao uso de preparações fitoterápicas da Cannabis, os extratos vegetais, geralmente consumidos na forma de tinturas (extratos hidroalcoólicos bem tradicionais).
Pois bem, recentemente uma publicação brasileira de médicos da Universidade Federal de Santa Catarina confirmou com um estudo clínico muito bem elaborado e conduzido que extratos de Cannabis contendo majoritariamente THC reduzem a dor e melhoram substancialmente a qualidade de vida de pacientes com um tipo de dor crônica conhecida pelo nome complicado de fibromialgia.
Mais complicada do que o nome é a própria doença. A fibromilagia é um tipo de dor crônica muito incômoda, de causa desconhecida e com sintomas que não raro extrapolam o universo da dor, incluindo fadiga intensa, dificuldade para dormir e alterações de humor . O paciente típico de fibromialgia é uma "senhora de meia idade" com dores pelo corpo todo e depressão (9 em cada 10 pacientes é mulher). Pra terem ideia da importância do tema, de acordo com os dados brasileiros, cerca de 3% das mulheres entre 30 e 55 anos sofrem de fibromialgia, o que equivale a cerca de 1,2 milhões de brasileiras.
Esse número sozinho já contradiz o mantra dos opositores de que "apenas 4 mil famílias poderiam se beneficiar de maconha medicinal no Brasil", que vem do número total de crianças cadastradas na ANVISA para importação direta de produtos à base de Cannabis para o tratamento de epilepsia refratária.
O estudo sobre fibromialgia vem quebrar vários paradigmas: o maior deles é confirmar, em solo brasileiro, que o THC é sim medicinal. Em apenas 8 semanas de tratamento, o grupo que usou o óleo de Cannabis teve a severidade da fibromialgia reduzida de 75 para 30 (em uma escala de 0 a 100 do score FIQ), comparado ao grupo placebo que reduziu de 70 para apenas 61. É um efeito dramático e inquestionável dessa terapia.
Mas mais do que isso, os efeitos foram observados em doses baixas (aproximadamente 4 mg/dia por via oral), muito inferiores às do uso recreativo e com efeitos adversos comuns a medicamentos neurológicos como sonolência, tontura e boca seca. Ou seja, é possível utilizar essa substância com segurança e obtendo resultados terapêuticos significativos sob supervisão médica. A quebra de paradigma vai além: o estudo utilizou uma preparação "caseira" com a planta toda, produzida em uma associação de pacientes, e foi conduzido no âmbito do Sistema Único de Saúde de um bairro carente de Santa Catarina, que é um estado conservador.
Um efeito curioso, e típico, da Cannabis é que ela promove o bem-estar. Eu brinco nas minhas palestras que estamos nos deparando com o primeiro remédio que as pessoas de fato gostam de tomar. Isto ocorre porque os canabinoides atuam de maneira global no organismo, não só reduzindo a dor. Semelhante às "endorfinas", geram prazer, regulam nosso apetite e sono. Então, imaginem o que é, para uma paciente acostumada a conviver todos os dias com dor, depressão e insônia, subitamente não sentir mais dor, dormir melhor e voltar a ter prazer em viver.
Tudo isso é traduzido objetivamente nos estudos clínicos como ganho de qualidade de vida, que foi observado nas pacientes com fibromialgia. Numa conversa descompromissada talvez uma delas nos relatasse simplesmente que "está se sentindo melhor" e esboçasse um sorriso aberto, que fazia tempo que não dava. Aliás, como "efeito-colateral" as pacientes relataram estar mais dispostas para o trabalho e houve uma tendência a menor absenteísmo… Que diferença que faz a gente se sentir bem, não é mesmo?
Esse não é o primeiro estudo a relatar o efeito medicinal da Cannabis sobre a fibromialgia, mas é provavelmente o mais bem conduzido e que traz resultados mais contundentes e traduzíveis ao tratamento clínico "de verdade". Esse aparente conflito entre uma substância que "dá barato", mas também cura, é inerente à essa planta e precisamos lidar com as questões ética que advém dessa realidade. Não é difícil, basta não querer impor a sua realidade aos demais. Espero que a ciência brasileira seja ouvida nesse debate tão importante à nossa sociedade, e faço votos que um dia se perceba que cercear a liberdade individual é uma medida tirana, e que sentir-se bem é o maior barato.
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